quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Sonetinho

A Sandoval
Na fúria do mar revolto,
brilha a lua distante e solitária;
acalma meu anseio roto.
pacifica as águas agitadas.

Aquece o inóspito frio
entre braços e toques mornos;
suave, como um doce rio,
invade o vazio do corpo

E da alma, que não mais se fazia.
Traz à vida dia a dia,
amor não mais sepultado.

E por entre nuvens frias,
"Vejam só, que lua linda!"
ele pensou, apaixonado.

[Fernando M. Minighiti][25.10.17][12:55]


domingo, 22 de outubro de 2017

A clareira

I
O SOM
Quando ele acordou, a escuridão caía sobre ele com o peso do céu. Encontrou-se despedaçado. Seu corpo jazia entre o negrume, fragmentado. Seus olhos independentes fitaram, entre nervos e sangue, sua cabeça chamuscada: as órbitas vazias se contrapunham à suavidade dos lábios que, ainda que carbonizados, repousavam tranquilos, sem ceder ao horror da carnificina. Alguém a decepara – ele se lembrava do beijo da lâmina, mas não sabia se fora antes ou depois do fogo.
Rodou seu globo ocular ensanguentado, e logo ali estavam suas pernas. Adiante, os braços. Ao lado,  o tórax - uma cratera abria-se em seu peito, e estilhaços das costelas jaziam por todos os lugares. Viu os pulmões negros, murchos, secos, enrugados como o tronco de uma árvore carbonizada, e percebeu, em sua ausência, o coração faltante - inchado, transfigurado.
O silêncio sepulcral foi cortado, então, pelo som de uma brisa que cortava o nada onde se encontrava. Sentia-a nos nervos. Tentou piscar, mas não pode. Foi quando a brisa converteu-se num inexorável vendaval, como que conjurado pelos lábios de um deus. E no caos, tão denso quanto a própria escuridão, tudo foi levado, sacudido; ele e o nada, todos subjugados pela celestial força divina, implacável e destruidora.
E quando pensava não ter mais nenhum sopro de vida, quando se perdeu de si e do vazio, tão subitamente como começara, tudo cessou.
De uma pilha de ossos, carne, sangue e podridão, ele se ergueu. As mãos trêmulas tocaram o próprio corpo, velho, mas ainda assim novo. Os dedos finos escorregaram pelo rosto, pelo pescoço novamente inteiro. Detiveram-se em seu peito - sentiu seus ossos e o bater do coração. Tudo era o mesmo, mas a experimentação de sua forma física era sempre uma experiência nova, de modo que, internamente, sua mente bradou silenciosamente o regozijo de ser novamente una - ainda que sua pela estivesse fina, esticada, como que gasta por anos de amolação.
Lentamente, como fera, de quatro, deu seus primeiros passos. Sentiu a grama sob a palma das mãos e o cheiro do orvalho matutino. Enfim, não era mais apenas escuridão, e o nada se convertera em alguma coisa. Suas articulações rangeram quando se tornou bípede mais uma vez. Seus joelhos fraquejaram por alguns momentos, rangeram novamente; seus braços tateavam o ar em busca de equilíbrio. Levantou-se.
Deitou os olhos ao seu redor. Era uma floresta. Troncos seculares espalhavam-se, belos e temerosos, até onde a vista alcançava. Atrás de si, um carvalho carbonizado sob a fria luz solar; à frente, o desconhecido que se aproximava a passos lentos. A brisa, que antes fora caos, o alcançava suave e ritmadamente, quase mística. Pôde senti-la como a própria respiração da floresta. E, na sua caminhada, espreitava por entre troncos e raízes que brotavam da terra, à espera de uma ilusão, uma armadilha, uma trapaça. Nesse espreitar, ressignificou-se à imagem e semelhança do que ia sendo-lhe apresentado como sua nova vida: fora fera, fora homem, fora matéria física e éter. Hoje, era apenas o que era.
As folhas rangiam, quebravam ao toque de seus pés. Cada crec era sentido no seu âmago mais profundo, em cada glóbulo, cada neurônio, tão certo quanto aquele batimento rítmico que reverberava do núcleo da terra e subia, subia, onda a onda, compasso a compasso, junto às folhas, aos seus pés, como um tímpano obscuro, como um ataque de mil tambores seculares. Como se a natureza percussionasse a própria existência, contanto tempo e contratempo para a hecatombe final.
Foi nessa sinfonia selvagem que tomou ciência de si. Hoje, era melodia, era fluído. Abandonou sua carne e, através da temporalidade sonora, permitiu-se estar em cada folha, cada tronco, cada flor, cada raiz. Pulsava por entre os grãos de terra e flutuava entre as copas das árvores. Escorregava tons. Ascendia. Intensificava para, depois, piano, derramar-se como a água escorre melindrosa em seu curso sinuoso mas, ainda assim, certeiro. De fato, foram nelas que observou seus olhos, desesperados e antropomórficos; e as rugas que nunca o haviam pertencido, bem como seu anseio animalesco. De nada importou. Aquelas pupilas injetadas que no reflexo permaneciam também, concomitantemente, perdiam-se na água esquiva. Elas estavam ali, e em todos os lugares. Ele estava em todo lugar, cada átomo, cada formiga, cada predador. Na caça, na fruta, e em cada semente. Ele era o espírito transcendido da natureza, a força maior, selvagem, inexorável. E pôde sentir crescer dentro de si, em si, em todo lugar, a fúria dos furacões e a devastadora tempestade. A majestade magmática e o inóspito gelo. E, ao ascender, ascendia também sua consciência. Perdia-se nos acordes que emanavam da natureza, até que se convertera neles. Ele era a própria natureza, em sua beleza e fúria. Era sua própria lei natural, seu magnata e seu operário, seu imperador e seu súdito, seu juiz, seu carrasco, seu condenado. Ele era o bem e o mal. E, em toda sua glória e crueldade, tornou-se, por fim, Deus.

II
O SILÊNCIO
Silêncio. A terra cessara sua sinfonia. Como o ar que devasta o que antes era vácuo, ele tomou consciência de sua pequenez. Sentiu-se cair, como um anjo exilado, deixando um rastro de penas e sangue no céu. Cada arranhão, cada corte conquistado com o choque entre as copas das árvores o fez restringir-se às barreiras de seu corpo físico. 
Um baque surdo saudou-o novamente à Terra. Sentiu alguns ossos quebrarem. A dor, por sua vez, não estava ali. Talvez ela não existisse, talvez não estivesse pronta ainda. Talvez não fosse digno de senti-la; pois como poderia, ele pensava, o mal sofrer? O que de tão maligno poderia haver no mundo que causasse chagas as chagas, que amaldiçoasse a maldição primeira, ou que maldissesse que nunca foi bendito?
O murmuro de um riacho denunciou que se encontrava no mesmo lugar. Ademais, não era capaz de reconhecer a vida que antes pulsava ali. A selvageria natural deu lugar à inércia. Até mesmo o ar era pesado e difícil de colocar para dentro.
Levantou-se. Outros ossos esmigalharam-se, mas ainda não sentiu dor. O sol se punha. Era crepúsculo: impossível o distinguir em meio às árvores, mas seu brilho, quase mortífero, ainda lutava pelo direito ao firmamento. 
Caminhou alguns passos. As folhas não rangeram. O murmuro do riacho tornava-se cada vez mais inaudível no silêncio sólido, que emanava da terra como outrora emanava toda sua vitalidade e sua sinfonia.
Na falta do som, fez-se presente o olfato. E, ao passo que se acostumava com a surdez imposta, intoxicava-se com a mais autêntica putrefação. O cheiro de carne decomposta tocava-lhe as narinas como quem exibe orgulhoso o jantar suculento. Com água escorrendo-lhe pela boca, faminto, ele perseguiu a funesta refeição.
Não tardou a encontrar uma clareira no meio do bosque inominado. As árvores ao redor eram curvas, retorcidas e antiquíssimas, em eterna reverência ao silêncio que especialmente ali era pesado como chumbo. 
O brilho moribundo do sol morrera, e a noite já caíra quando ele resolveu adentrar o reino daquela clareira tão antiga quanto o próprio tempo, de modo que foi essencialmente pelo olfato que percebeu que sua busca chegara ao fim.
Ali, em frente aos seus pés sujos de terra, pelo menos três cadáveres apodreciam em ritmos diferentes. O primeiro, recostado em uma das árvores, era o mais conservado, ainda que sua pele enrijecida não negasse diversos sinais de putrefação. Ao observá-lo de perto, notou que um líquido negro ainda pingava de sua boca, como um vômito que ainda cessa. Da mesma boca semicerrada, um verme arrastou-se preguiçosamente para fora, pelos lábios, para a bochecha, até entocar-se, por fim, na sua narina esquerda.
O segundo corpo, também de um homem, jazia pendurado pelo pescoço numa árvore oposta. Era pele e ossos, e apresentava um nível de putrefação maior do que seu companheiro de morte. Uma de suas pernas fora arrancada brutalmente acima do joelho, no meio da coxa. Provavelmente algum animal banqueteara-se dela. Ainda assim, eram evidentes os rastros de algum ser humano que teria desbravado tal clareira, pois nenhum animal teria feito o que ele viu: uma das mãos do enforcado jazia em um ângulo de 180º, fazendo a palma aparecer onde não deveria. Assim, o condenado desenhava um macabro simulacro da lei divina: uma mão oferece; outra toma. Ele dá, Ele tira.
Por fim, o terceiro homem era quase irreconhecível. A maior parte de sua pele havia se decomposto, restando alguns poucos órgãos entre sua carcaça óssea, indistinguíveis entre os ninhos de vermes que o habitavam. Seus ossos da mão direita ainda seguravam um punhal, há muito sem fio, mas que cumprira o propósito de tirar-lhe a própria vida. Não havia mais rosto. Somente o crânio mantivera-se, eternizando um irônico sorriso num cadáver que não tinha motivos nenhum para sorrir. Eram belos dentes.

III
O VAZIO
Sucumbiu ao peso do silêncio e, lentamente, apoiou-se nos nós de um tronco próximo, deixando-se cair. Ali ficou, e contemplou a clareira que mais parecia a sala de jantar da morte. Nada que vivia poderia prosperar naquele reduto perdido no coração do bosque. Ali a natureza morrera. Não havia força, humana ou suprema, que expurgasse os vermes que parasitavam, alimentando-se da morte para sobreviverem e, por conseguinte, também mortos. Isso ele sabia; sentia ecoar em seu interior. Já não passava de nada além de uma casca, oca por dentro.
As folhas não rangeram quando ele tocou o solo com o corpo. O vento não soprou. O sangue que batucava suas têmporas tornou-se lento, lento, quando por fim também se silenciou.
O vazio inexorável que tornava a surdez insuportável curvava não apenas as árvores que circundavam a clareira, mas convergia todo o mundo naquele único ponto. Em pronto, tudo se tornara escuridão, e o mundo resumira-se àquela vegetação rasteira, àquele silêncio, aos mortos. Ao céu sem luar, às estrelas que se recusavam a brilhar à tamanha desumanidade. E, sob os ombros dele, único ser que ousava respirar, de leve, nas terras da morte, o mundo inteiro.
Tombou seus olhos ao seu redor. Logo, suas pupilas se acostumaram com a escuridão, e aprendeu a distinguir seus companheiros de clareira. Pôde reviver suas vidas, sentir suas dores: ali, na escuridão, desvendou a dor que assolou cada um dos três corações que já não batiam, sentiu o ar que seus pulmões outrora expeliam em suspiros apaixonados. Reviveu suas angustias e seus tormentos. Provou, nos próprios lábios, os beijos de outrem e o gosto de suas lágrimas. Pôde desabar em suas almas tempestuosas, naufragou docemente pelos mares de seus monstros mais íntimos, mais secretos; e velejou por suas resignações espelhadas.
Sucumbiu ao peso do mundo e, então, em um suspiro desesperado, seus ombros cederam, seu corpo cedeu, abraçando a grama morta, o ar pesado, o firmamento negro. E expandia-se, mais uma vez, mais e mais; provou cada morte, cada gota de sangue derramado, cada golpe misericordioso, fatal. Acima, sempre acima; e abaixo, expandia-se. Doou-se ao nada e, ao passo que este o dominava, nada se tornava. Até que se converteu em tudo o que ali havia. Converteu-se ao nada. Converteu-se em tudo.
Ali, recostado na árvore ao lado do enforcado, respirando não mais do que os cadáveres, tentou sentir algo. Revolta. Dor. Tristeza. Nada vinha. Sentiu a necessidade iminente de enlutar-se pelas desventuras dos desconhecidos, tentou acessar sua empatia. Nada. Forçou-se a chorar. Clamou pelas lágrimas mais intensas e mais salgadas que poderia conjurar e, no entanto, seu olhar de chapas de aço continuava implacável, opaco, indiferentes, inacessíveis.
Amaldiçoou-se por sua frieza, e em parte isso foi capaz de concluir. Pois como a morte poderia lamentar a própria morte? Como um moribundo poderia encarar a escuridão eterna com maus olhos? Pois eu estou morrendo, ele pensava. E tão logo concluiu sua hipótese, insetos passaram a romper-lhe a pele, de dentro para fora, escapando-lhe de suas entranhas, matando-o. Sentiu (e seria uma das últimas das suas sensações físicas) o coração acelerar desprovido de qualquer emoção ou sentimento. Apalpou o peito em tempo de sentir seu músculo explodindo em milhares de vermes que fugiam do seu ser, como o sangue flui de quem é ferido. Ora, veja, pensava: eis que meu próprio ser banqueteia-se com minha própria carne. Eis o que sou. Eis a desgraça da minha existência.
Tocou uma última vez o coração. Roubou um verme robusto. Preso entre o indicador e o polegar gangrenados, o verme contorcia-se no próprio eixo, inutilmente, até que ele o levou à boca. Mastigou. Saboreou. Sorveu.  A existência era tão repugnante quanto o verme fora saboroso ao seu paladar. Ria internamente, enquanto desfazia-se em podridão: um brinde à vida no altar da morte.

IV
O SALVADOR
Abriu os olhos. A loucura desaparecera. Tocou seu peito e não sentiu nenhum verme corroendo-lhe as carnes, nenhum inseto que rasgava sua pele. A clareira, o silêncio palpável, a escuridão, os cadáveres, entretanto, ainda estavam ali. O mundo ainda era tudo aquilo e apenas aquilo, e mover-se sob o peso do vazio ainda era difícil.
Recordou o gosto do verme que saboreara momentos antes, entre seus delírios. Seu estômago contorceu-se, revoltou-se e revirou-se. De quatro, novamente, pôs-se a vomitar veementemente, tal o asco da lembrança. Botou para fora tudo o que tinha dentro de si, e o que não tinha também: primeiro, vomitou uma pasta bege, cheia de pelotas. Depois, queimando-lhe o esôfago e a garganta, vomitou a bile, ácida e amarela. Por fim, um líquido negro indistinguível, quente, áspero e amargo.
Recostando novamente na árvore, sentiu seus olhos lacrimejarem tamanho o esforço físico desprendido na purificação de seu corpo. Arfava, buscando desesperadamente um ar denso que recusava satisfazer-lhe. Levava seus olhos dos cadáveres ao vômito, e deles novamente aos mortos. Pensou, então, em meio às suas contemplações, ter visto algo robusto, liso, viscoso, retorcer-se entre seu vômito. Ainda assim não se deteve por muito tempo, pois, pela primeira vez - em dias? Anos? - fez-se luz.
Primeiramente, tímida e distante, entre as árvores, em meio ao bosque, para lá da clareira. Depois, mais forte, sempre à altura dos olhos.
Ele se levantou com dificuldade, e encarou aquela luz opaca que aos poucos mostrava emanar de um homem que ia ao seu encontro. Ele possuía cabelos bastos, ora negros, ora dourados, que descansavam em ondas largas pela sua cabeça. Os olhos eram negros e rotundos, anunciando um rosto sem barba e igualmente redondo e bondoso. Os ombros eram largos e imponentes. Usava uma túnica vinho que balançava sob um vento que a clareira não sentia. Os pés estavam descalços, e pisavam por entre raízes e espinhos sem que nenhuma ferida fosse aberta. O sangue fluía tão selvagem no estranho que todo o silêncio tornou-se o som das têmporas dele; e de todo aquele corpo brilhava uma aura perolada, suficiente para fustigar os olhos, mas não para iluminar toda a clareira.
Àquela visão, pela primeira vez desde que sucumbira ao vazio, ele chorou. E todas as lágrimas que deveriam ter nascido ao contemplar os mortos, todo o sentimento que ele rogou para sentir momentos antes, transbordou-lhe agora, aos borbotões. Lágrimas descontroladas fluíram como rios salubres que desbravavam seu rosto arruinado, e os soluços não o deixavam respirar. Recordou a dor de todo aquele local que há pouco provara, e finalmente sentiu como se não fosse capaz de suportá-la por mais nenhum segundo. Recordou os tormentos que cada cadáver que ali jazia sentiu em vida, relembrou seus amores, suas glórias e suas quedas e, quando não pode mais suportar tamanho sofrimento que lhe rompia o coração, deixou-se cair.
Não tocou o chão. Sentiu algo morno quando deveria sentir a relva gelada. Cessou, aos poucos, seu pranto doloroso, e abriu os olhos. O homem, que consigo trouxera a luz, amparara-lhe a queda, e segurou-o entre seus braços. 
Ali, com as costas apoiadas nos braços do estranho, encarando de perto seus olhos profundos, ele sentiu-se em paz. Calou as lágrimas, calou os soluços. Deixou-se embalar pelo toque morno do desconhecido, pela luz que agora já era agradável. Suspirou. Aquilo era, por fim, a salvação.
Ousou sorrir. Sorriu. O homem luminoso respondeu o sorriso, e também arqueou os lábios.
Logo após, pela primeira vez, falou. E de sua boca escapou o hálito de milhares de cadáveres decompostos. Seus dentes eram afiados como as presas das feras, e sua língua era negra e pontuda. Seus olhos se arregalaram e suas pupilas se injetaram quando disse:
-Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
E, sem aviso, o esbofeteou.
Com a força do tapa, ele foi jogado à relva gelada. O mundo girou por alguns instantes, e ele sentiu o gosto de sangue na boca. Tentou se levantar. De quatro, percebeu que do seu vômito negro um verme escapava e rastejava vigorosamente para o cadáver mais próximo.
Antes que pudesse compreender que havia, o homem estranho o agarrou pelos cabelos e o levantou até que seus pés não tocavam mais o chão. Só agora percebeu o quão ele era alto.
Uma segunda vez, o braço luminoso do homem caiu-lhe sobre o rosto, fazendo-o cair, agora, mais longe. 
Cuspiu alguns dentes. O mundo voltara a girar. À sua esquerda, ouviu um farfalhar de asas, e pensou ter visto os pés do demônio o seguindo e chutando-o na barriga, nas costas, com toda a força. Rolou alguns metros. Olhou à frente, em um desespero que não se revelava. Não via mais os cadáveres.
Pela segunda vez, o homem luminoso agarrou-lhe pelos cabelos e, pela terceira vez, amparou-lhe nos braços ainda bondosamente mornos e aconchegantes. O próximo golpe haveria de ser o fatal. Ainda assim, o medo, o desespero, o pânico se recusavam a manifestar-se em seu âmago. Tudo estava completo agora, ele pensava. Ele não era nada. Ao nada, nada se teme.
Pensou ouvir, ao longe, risos, conversas ansiosas. Três vozes de homens distintas que, entrosados entre si, deveriam assistir à sua decadência. Lembrou-se da ausência dos cadáveres. Ah, pensou, quanta ironia. Virou lentamente os olhos para o que ainda se via da clareira, e lá estavam eles: três homens, perfeitamente vivos, bocas semiabertas, transbordando uma expectativa palpável, ansiosos para o abatimento do sacrifício. Ele fixou seus olhos nos três pares de olhos dos que já não estavam mortos, E ele pode ver, nas seis pupilas que o encaravam de volta, cada organismo vivo da floresta pela qual um dia caminhou, toda a pura selvageria que um dia inflamou-lhe o peito e o fez transcender.
Voltou os olhos para o homem que o amparava. Viu, no fundo de suas pupilas felinas e impiedosas, talvez, um rastro de bondade; e ali reconheceu os olhos do seu salvador, que levantou seu braço direito uma última vez. A salvação é iminente, ele pensou.
O braço caiu. A escuridão abateu-se sobre ele, que não foi capaz de ver o sol nascer no instante seguinte, ou o canário que cantava num carvalho que não estava mais queimado; ou o orvalho que atapetava as folhas; muito menos a flor solitária que nascera no meio de uma clareira deserta.


[Fernando M. Minighiti][21.10.2017][2:20]


sábado, 16 de setembro de 2017

Quatro (Queda)

Prazo vencido, rendido
para o penúltimo soneto.
Sentimentalismo obsoleto
de amor perdido e falecido

Que arde na pele morta e fria.
Negro como cascavel.
Azul como o puro céu
que na chuva as dores expia.

No último descaso teu,
envolto em máculas e lástimas,
encontro os perdidos paraísos.

Pois aqui, no íntimo meu,
a última de minhas lágrimas
será o primeiro dos meus sorrisos.

[Fernando M. Minighiti][04.09.17][01:26]


terça-feira, 29 de agosto de 2017

Heathcliff

"Não seja minha Catherine", ele pediu,
mesmo quando já éramos coroados
pelas negras nuvens tempestuosas,
inundando-nos até os ossos.

E em nossos espasmos hipodérmicos,
não havia nada que poderia ser feito
se não salvar nossas almas geladas,
aquecendo o sangue na partida inevitável.

E tão logo a tormenta acolhe a calmaria,
tão logo a louca mágoa infla-nos o peito,
nossas procedências infernais cavam tais tumbas,
abismo onde não posso encontrá-lo.

Hoje, a sete palmos do chão,
não sinto a terra estremecer.
O desespero não o levou à loucura
que exuma os restos do meu apodrecido cadáver.

E neste silêncio sepulcral em que me encontro,
vejo que antes do pedido, e da tempestade e do abismo,
não havia nada que pudesses me pedir que
de bom grado capaz seria eu de lhe ofertar:

Pois como poderia não ser tua Catherine,
amando-te mais que as rochas eternas do chão,
se desde o início, para mim, em mim,
sempre foi e sempre serás meu Heathcliff?

[Fernando M. Minighiti][06.08.2017][03:23]




terça-feira, 1 de agosto de 2017

Gravura

A Sandoval
Teus contornos borrados
de tinta fresca, recém pintado.
Exala o cruel odor imaculado
dos metais os quais foi forjado.

De terno olhar cintilante,
que do horror ainda não provou,
anseia pelo mistério brilhante
que certo o destino preparou.

Em tuas melodias - sinceras? -
perco-me nas dúvidas internas
do que não posso dominar.

Pois quem poderá dizer
que forma virá a ter
quando tua tinta secar?

[Fernando M. Minighiti][31.07.2017][03:13]




segunda-feira, 10 de julho de 2017

Três (Realidade)

P.P.R.A

Forjado em sangue, és de carne e osso,
e artérias, e músculos, e sonhos.
Teus ancestrais, não mais do que mortos:
O pó não fareja à genealogia, tão pouco se importa.

Encontraste o sentido da vida em viagens distintas?
Subjugou a dor na brancura do teu dia a dia?
Teus sonhos não são mais altos que tua fronte,
pois nela tu findas; nada abaixo, nada acima.

Negando tua pequenez,
buscas, tal qual criança contrariada,
significância à uma essência invariada.

Quanto a mim, nesta louca lucidez,
encaro teus ossos em teus passos:
"Amém! Por fim, não és à prova de fracassos!"

[Fernando M. Minighiti][10.07.2017][02h44]


domingo, 9 de julho de 2017

Subjetividade. Duplicidade.

29 meses. 870 dias. 20.880 horas e um milhão e duzentos e cinquenta e dois minutos. Cem milhões e duzentos e vinte e quatro batimentos de coração. E tudo ainda é o mesmo.
Uma das principais críticas à arte contemporânea é a subjetividade. É difícil saber o que o escritor quer atingir. Mesmo que seja algo que ultrapasse as bordas do seu próprio corpo, tudo é, por essência, interno, singular. A chave da compreensão total, quando há, recai sobre ele mesmo, deixando o mundo à deriva, trancado do lado de fora de seus conceitos. Não ligo para isso. Como poderia ligar? Não sou poeta, não sou prosador. Não sou artista, e o que de mim é expresso, que poderia ser atribuído apenas e, ainda assim superestimada aspiração à arte não é nada além do que o retrato ou a transfiguração de uma dor intrínseca ao viver. Como, pois então, trazer sentido à dor? A dor é sem sentido, assim como a arte. Não me importo em muni-la de significado artístico refinado além, naturalmente, da própria dor.
Assim, concluo que tudo permanece em seu estado de duplicidade. Todas as 29 luas cheias ainda permanecem e, em breve, teremos a trigésima aparição. De fato, tornou-se impossível fitá-la por mais do que poucos segundos desde a de número zero – assim como as estrelas ofuscadas momentaneamente pela fumaça do cigarro. O brilho resplandecente torna-se uma afronta ao fato de hoje ser insuportável.
Tudo permanece porque tudo está germinado. Sementes gêmeas. E nunca haverá de nascer árvore mais frondosa e temível quanto a do fruto do meu amor e do meu ódio. Não há como suprimi-los. Eles coexistem e, sem alguma metade, tudo sucumbe. Entre os escombros, ruína também me tornarei. Assim, ao passo que o ódio acalma-se no âmago, banha o ser com sua escuridão opaca, um resquício tímido e dourado, ofuscante, de tamanho negrume avassalador, valsa lentamente no vácuo sensível.
E entre o soturno erudito, nino ao som da melodia da dupla existência. A natureza ambígua sangrou por tempo o suficiente para repousar para o balé agridoce das vivências, para aquilo que vagueia entre o adorável e o inconcebível, entre as luzes e as trevas, a vida e a morte, ente o tênue espaço das duas faces horrendas do dançarino siamês que não pode mais ser fragmentado. E ali, nele vão ínfimo, a mais pura beleza da resignação.
Porque é ali, na linha tênue entre a dor e o prazer que chamamos vida, que tudo ainda consegue permanecer. Não sou ninguém para desbalancear o equilíbrio frágil da existência renegando o veneno concentrado, fermentado do meu ódio. Assim sendo, é impossível negar o fino fio de ouro que insiste em ser a munição de uma guerra sem fim. Sem sentido.
Depois de 871 dias, tudo permanece. A trigésima lua cheia está para nascer, e dessa vez não erguerei meus olhos para as estrelas.


[Fernando M. Minighiti] [07.07.2017] [16:49]





sábado, 17 de junho de 2017

Dois (dias)

PPRA
17 dias e nada.
Das araucárias à neve,
a fronte imutável, gelada,
a saudade do que nem estava

predestinado ao longínquo
de muito mais que 90 dias.
Estabilidade mutável de liquido -
De certezas, só o que já sabia.

De férrea reclusão,
abrigo ao coração
que não sabe abrigar-se sem um igual.

De grão em grão,
neve que sufoca o sim em não.
Terras que sonham com um verão banal.

[Fernando M. Minighiti][17.06.2017][21:58]





sexta-feira, 12 de maio de 2017

Um (separação)

P.P.R.A.
Cala a voz à distância congelante
Palavra sem dom na garganta seca
Do murmuro, a felicidade distante
Encontra no tormento mais uma faceta.

E assim, como cego, perdido em historietas,
O fato me transpassa como dor lancinante
E por mais que fuja em poemas, operetas,
Da verdade o leito será sempre adiante:

Que por mais que o amor brote,
Não há nada em mim que transborde
A não ser tal dor que persiste.

Que dos "eu te amo", todos ditos,
De amores sentidos e perdidos,
És de longe o mais puro e o mais triste.

[Fernando M. Minighiti][10.05.17][14:45]


quarta-feira, 26 de abril de 2017

Menos um (Preparação)

P.P.R.A.

Um cataclisma, uma colisão,
fruto deliberado do acaso ou destino.
Apenas aquilo que traz felicidade ao coração,
e que aos poucos de desfaz em desatino.

O calor de rotundo fitar
também é o sussurro do adeus -
a velha ironia do recomeçar
de quem não crê em Deus.

E essa dualidade
que um dia há de matar
é o que me guia adiante.

Pois toda minha felicidade,
que repousa em seu olhar,
fica, aos poucos, mais e mais distante.

[Fernando M. Minighiti][24.04.2017][16:45]


terça-feira, 18 de abril de 2017

Sina

PPRA

Pensei em escrever sobre você
Mas estou no Céu e no Inferno
De modo que assim não pode ser.
(E se) nesses dois opostos

Uma face sua posso compreender
Como hei de desvendar
Se o coração está sabendo amar
Ou se o luto há de reinar?

O regozijo e a tristeza
Descansam em rotundos olhos âmbar.
Leva-me da paixão à insanidade.

O soturno nasce do amor que em mim há
Num vão entre a fala e o silêncio
Entre teu afago e tua - até amável - impassibilidade.

[Fernando M. Minighiti][18.04.17][00:00]


segunda-feira, 20 de março de 2017

Incantável

P.R.B.

Canto aqui homem que não se canta
Dos sete mares desconhecido
Derrama teu véu de negras angústias
e oculta-me o bom sentido.

Canto o que não deve ser cantado
Pois roubadas as palavras são
Em tal presença, imperiosa como trovão
que só em mim ruge em negro e clarão.

O desatino que me causou
é como flor que desabrochou
no lamaçal, na podridão

É o céu, é o Inferno
é a dor do sincero
a incerteza da salvação.

[Fernando M. Minighiti][20.03.17][00:44]


domingo, 19 de fevereiro de 2017

Soneto quebrado

Deleita os olhos
em teus terrores líquidos.
Correm como ratos do predador
lufadas de ar no concreto liso.

Repara além das portas fechadas,
segue no olhar como que caçador  -
o trem adiante se perde
num passado finito.

Pisa na camisa roxa surrada
largada na escada,
e agora concreto também é.

Que não pare no caminho,
engole choro, engole carinho,
que passado o presente também é.

[Fernando M. Minighiti][19.02.2017][00h57]


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Apatia

Lá pelas horas que antecedem a manhã, as respirações já estavam sincronizadas. Suspiros leves e espontâneos quebravam o ritmo, que logo era restabelecido. Até que a respiração fez cócegas na nuca mais baixa. Ele se mexeu de leve, passou as mãos no pescoço. Curvou mais a cabeça. As cócegas eram involuntárias, por isso mesmo irritantes, mas de um prazer inumano. 
Abriu os olhos. Sentiu o cheiro de couro sintético, barato. O braço adormecido, privado de circulação, ele desdobrou e o deixou cair. Apoiava o outro sobre o lençol. Ainda sentia a respiração dele brincando-lhe na nuca, o peito inflando e murchando devagar às suas costas, sua mão repousando suavemente na sua lateral. Naquele momento ele era o ser mais leve. 
Sentia a luz opaca da televisão o banhar. O som, quase inaudível, dizia que algum tipo de orquestra tocava. Ainda assim, ele não se virou. A música estava tão baixa que poderia estar saindo de seus pensamentos mais profundos, e aquilo estava agradável. As luzes dos eletrônicos piscavam freneticamente ao fundo. Tudo estava vivo e, ainda assim, muito silencioso, como que à espreita.
O braço voltou a circular, e ele pôde a superfície felpuda. Cada vez era uma sensação única. Sentiu, também, as cinturas que se tocavam e as pernas, que de tão enroladas tornavam-se um só corpo. Fechou os olhos e, por um instante, foi tudo: respiração, toque, música, luz.
Virou-se para o outro lado, lentamente. Sentiu o formato do travesseiro mudar. A mão escorreu de sua lateral, então ele a recolocou, pendendo agora até suas costas. E, de lá, deslizou sua própria mão pela outra mão, pelo braço. Subiu-lhe pelo ombro até descansar no peito branco que ainda movia-se lentamente. Tocou-lhe o maxilar curvo, sentiu-lhe a aspereza da barba.
Os lábios fechavam-se em botão. O nariz europeu, irritantemente simétrico, continuava a expelir o ar que o acordara. O viu com os olhos e com as mãos até que a música se tornasse insuportavelmente alta e um nó formasse dentro de si. 
Ainda assim, tudo permanecia calmo enquanto ele o partia em pedaços e o escondia. Escondeu no peito, na cabeça, na boca. Fez do sangue dele o seu sangue, da sua carne, uma pele emprestada. Envolveu-o num abraço sangrento e desesperado, numa calma mortífera. Roubou-lhe a voz, roubou-lhe os medos. 
Desfez-se.
O sol nasceu. Espreguiçou-se. Esticou o braço até vencer todo o colchão vazio e alcançar o couro barato. Não estava sozinho.

[Fernando M. Minighiti][09.02.2017][02:07]



sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Prosa tardia

Tenho prosa e poesia obstruídos. Recusaram-se a nascer, embora não se preocupam em negar suas existências. Já foram muito prematuros. Prosa e poesia espremem-se, comprimem-se e dividem o pequeno espaço com a certeza de que também deveria ter exprimido algo no aniversário do mundo. Ah, as ideias imortais, à prova de balas, deleitam-se em angústia, constituindo-a, inclusive. São o começo, o meio e o fim, o algoz e a vítima. Ora, se deleitam, por qual motivo deveria dar-lhes à luz?
Proseio agora, tardiamente. É que não sei bem a hora das coisas. Já soube; agora elas me escapam. Sei que é tarde, o corpo fatigado clama um repouso (que não virá), mas a poesia – ah, a poesia e sua irmã nunca descansam. Reviram-se no útero atrofiado, impõem-se. Sou apenas um mero fantoche.
Não sei bem o tempo das coisas, mas um dia já soube – acredite! De quanto tempo precisamos para que possamos, enfim, compreender o próprio tempo?
O mundo então se torna o que costumava ser. De quem, então, nasceu tal ironia? Torno-me, pois, esfera. Circular, deslizo pelo caminho, rolo; sou ciclo. Não há início, é uma uniformidade atemporal, mas tudo caminha para um fim – rendo-me, deslizo, circulo-me, circundo-me, de dentro para fora – PA! Estrepo na quina. Desde quando este mundo ficou tão quadrado? Onde reside a anomalia?
E, nas quinas, o passado intangível e o futuro invisível.  Prende-se a eles com todas as forças, mas o esforço da mutação parece ser tão... inútil. Por quais motivos deveria reverter a versões anteriores ou decodificar códigos que ainda não é possível ler? A resignação é mãe dos ciclos.
Deste útero doentio, donde a prosa e a poesia entediam-se, nascem as mais assombrosas aberrações. Sinto falta dos natimortos – pois quando eles nascem, ah, não há alma que escape. Eu realmente sinto falta dos natimortos. Que sensação mais fleumática pode haver? Conter o próprio caos em detrimento da assombrosa beleza do mundo. Deleito-me em mãos, punhos, corpos, olhos; escalo muros, trepo a macieira, provo do fruto proibido, doce, insuportavelmente doce como o fel. Toco o paraíso e ele é negro. O mundo é tão assombrosamente belo.
Até que os filhos clamam – e eles clamam. Escorre pelas quinas e envolvem-se numa esfera sem ponto de referência, o tudo e o nada, o sempre presente. O mundo sempre foi assim, e a resignação sempre será mãe dos ciclos, prima distante da paz (usa seu sobrenome), e irmã da apatia, apatia amarela, icterícia que aos poucos rouba-me as ações.
Proseio agora com a certeza de que irrito meus frutos. Cutuco a onça com vara curta, porque sempre fui bom nisso, muito bom; porque o útero já é negro. Posso sentir suas revoltas nesse exato momento. Anseiam por romper a placenta de lucidez e berrar a plenos pulmões “deixem-me viver!”, mas não! Não vêm? Proseio tardiamente.
Um dia, haverão de serem dados à luz mais negra que podem acalmá-los. Hoje, estou fazendo leite.


[Fernando M. Minighiti][04:45][06.01.17]