quarta-feira, 21 de outubro de 2020

"Assim você vai morrer só", reza o dito, 
quase com certeza, como se da alma fosse a pena,
como se a morte, de fato, não fosse,
negando que só, assim, em português, é líquido,
vagando entre o ser e o estar,
sem se deixar de forma se aprisionar.

Só, por si só, não é essencialmente um nó.
De alegrias pode-se viver só.
Ou o que dizer dos que só de esperança
se movem e se transformam?
Combustível de felicidades
daqueles que só de amor vivem.

Só é uma totalidade, é abrangente.
É mais que a solidão aparente.
Separada por uma única letra, por pouco
não se transforma em sol - e o que é o ele
se mirado ao grande bailarino espacial?
Lá, onde só tudo que existe está.

E na extensa abrangência, só
então também recai tudo o que existe -
e as lágrimas que choram, e o suspiro que respira,
e o desespero sob a pele que rasteja
só, completamente só, à espera e à espreita
de compartilhar um pouco de sua certeza.

Também do só se alimenta o medo,
que se encerra em si mesmo 
e que mais nada precisa buscar.
O que dizer dos que só de lamentos sobrevivem?
Ou que só de desejos se reprimem?
E de culpa, só, a se infectar?

Pouco necessária, a dúvida é pouco justa.
Mas, entre o ser e o estar
há condições que não posso transformar
em palavras ou versos ou frases
na busca implacável pela uniformidade.

Há uma urgência no sentir que me impede de medir
o meio cheio ou o meio vazio.
Minhas lágrimas estão há quilômetros dos meus sorrisos -
No caos, coexistem dentro de um nó
Parte de um todo completo, dividido e repartido,
junto e, ainda, irremediavelmente só.

[Fernando M. Minighiti][20.10.20][15h]



segunda-feira, 9 de março de 2020

Canção

Se eu disser que não lembro como começou
Ia ser outra mentira pra guardar e esquecer
Não cabe nada aqui além de tudo que passou
E a angústia me escapa sem poder conter.

E se eu te disser que já não sobrou nada mais
Do que já conheceu nos olhos de outrem?
Você acreditaria e seguiria a vida?
Voltaria sorrindo merecido desdém?

Vem e deixa minha mente e boca calada
Pra deixar de sentir essa culpa sem dó
Sendo que já nem sei se é culpa ou mais o que
Vem pra ver o coração resumido a pó.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Deus!

Felicitado, ó monstro indomável?
Eterna é tua busca por sangue
Perdido em rios de luxúria infame!
Ó mítica fera, o prazer não realizável
na obscura obstinação assassina!

Ousas retomar, ó pérfida alma,
traição que recai sobre ti,
angústias que sobrevivem sem ter fim?
Saciaste o teu desejo pela chama
que mata aquilo que ama?

Ó homem destroçado,
acorrentado ao teu legado,
desposa os martírios teus!

Sem fé, sem glória, sem norte,
horrores, tormentos, má sorte
àquele que brinca de Deus!

[Fernando M. Minighiti][07.05.2019][23:52]


segunda-feira, 8 de abril de 2019

Sangria

PJW

Se carma é uma vaca,
pois então não dá leite.
Mata de miséria, de fome,
de loucura e de sede.

E nessa erupção
é difícil saber lidar
com tudo o que ainda não passou
com tudo o que ainda pode chegar.

Avante, sempre adiante.
Espera o tempo trabalhar
- Esse empregado insubordinado
que insiste em protelar.

Pois não é só de vingança
que se faz refeição fria:
O tempo, maldito, tudo petrifica:
Saudade, amor, alegria.

E eu sinto que não sou maturo
para deixar à sorte a vida.
Tenho pressa no viver,
pressa no que me angustia.

E, na pressa, tu dirias
que o céu é o nosso guia,
que nada mais o angustia,
que tudo em  nós já te cativa.

Mas se quiseres ir,
faça a galope, só anuncia.
Prepara terreno pr'essa sangria
de quem, por ti, até já faz rima.

[Fernando Martins Minighiti][08.04.2019][14:03]


domingo, 31 de março de 2019

Inonidecima

Como escrever
Sobre essa raiva indomável
De motivo e causa inominável
De recusa profunda em sofrer,
Se é algo se não se pode ler,
Ainda que em versos possa tentar
Sentimentos tais abreviar
E que em vão tento sondar
Em mar de palavras inavegavel
Em som de sinfonia não cantavel

Como posso em poema versar
Esse nada que tão lentamente
Aos poucos e tão latente
Em mim passa a habitar
Sem nem ao menos hesitar.
De vazio faz seu abrigo
Chamando para morar consigo
Rompendo e dividindo comigo
O vórtice que nasce fluente
De vazio e escuridão crescente

Como por ajuda clamar
Se não posso quiçá entender
O que faz esse nada crescer
Com a voz que só faz calar
Com a dor que só faz chamar
Por aquilo que já não tem nome
Por amor que não aparece nem some
Por eterna e insaciável fome
Pela angústia que se faz sem querer
Pela vida que se desfaz no sofrer

[Fernando Minighiti] [04.03.19] [19h16]



San Vatentín

Dois homens se beijam na sacada
Vejo aqui do décimo andar
Lá em baixo, tudo tão igual.
Aqui, tudo tão distinto.

Tropeço na via, palavras escapam
Impessoal, um estranho sem ninho.
Caminhando entre delicias e belezas,
Obeliscos de almas mudas.

Mas lá do alto,
Da montanha secular,
O silêncio abrasador.

O nada no tudo
Dissolvo em amar
Dissolvo de dor.

[Fernando M Minighiti] [15.02.19] [00:42] (CL)



quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Cansaço

Deposita no mar teu desespero,
e a água tua mágoa dilui.
O fardo é pesado, não te culpes.
Todo oceano é negro pela noite.

Respira, amigo.
Finge que nada aconteceu,
agora que o léxico te escapa.
Agora que a língua, em ti, morreu.

E nas ondas,
banha-te de tristeza,
de líquida calmaria.

Seca-te no vento.
Limpo, voa com leveza,
rumo à terra jamais vista.

[Fernando M. Minighiti][16.01.2019]