domingo, 22 de outubro de 2017

A clareira

I
O SOM
Quando ele acordou, a escuridão caía sobre ele com o peso do céu. Encontrou-se despedaçado. Seu corpo jazia entre o negrume, fragmentado. Seus olhos independentes fitaram, entre nervos e sangue, sua cabeça chamuscada: as órbitas vazias se contrapunham à suavidade dos lábios que, ainda que carbonizados, repousavam tranquilos, sem ceder ao horror da carnificina. Alguém a decepara – ele se lembrava do beijo da lâmina, mas não sabia se fora antes ou depois do fogo.
Rodou seu globo ocular ensanguentado, e logo ali estavam suas pernas. Adiante, os braços. Ao lado,  o tórax - uma cratera abria-se em seu peito, e estilhaços das costelas jaziam por todos os lugares. Viu os pulmões negros, murchos, secos, enrugados como o tronco de uma árvore carbonizada, e percebeu, em sua ausência, o coração faltante - inchado, transfigurado.
O silêncio sepulcral foi cortado, então, pelo som de uma brisa que cortava o nada onde se encontrava. Sentia-a nos nervos. Tentou piscar, mas não pode. Foi quando a brisa converteu-se num inexorável vendaval, como que conjurado pelos lábios de um deus. E no caos, tão denso quanto a própria escuridão, tudo foi levado, sacudido; ele e o nada, todos subjugados pela celestial força divina, implacável e destruidora.
E quando pensava não ter mais nenhum sopro de vida, quando se perdeu de si e do vazio, tão subitamente como começara, tudo cessou.
De uma pilha de ossos, carne, sangue e podridão, ele se ergueu. As mãos trêmulas tocaram o próprio corpo, velho, mas ainda assim novo. Os dedos finos escorregaram pelo rosto, pelo pescoço novamente inteiro. Detiveram-se em seu peito - sentiu seus ossos e o bater do coração. Tudo era o mesmo, mas a experimentação de sua forma física era sempre uma experiência nova, de modo que, internamente, sua mente bradou silenciosamente o regozijo de ser novamente una - ainda que sua pela estivesse fina, esticada, como que gasta por anos de amolação.
Lentamente, como fera, de quatro, deu seus primeiros passos. Sentiu a grama sob a palma das mãos e o cheiro do orvalho matutino. Enfim, não era mais apenas escuridão, e o nada se convertera em alguma coisa. Suas articulações rangeram quando se tornou bípede mais uma vez. Seus joelhos fraquejaram por alguns momentos, rangeram novamente; seus braços tateavam o ar em busca de equilíbrio. Levantou-se.
Deitou os olhos ao seu redor. Era uma floresta. Troncos seculares espalhavam-se, belos e temerosos, até onde a vista alcançava. Atrás de si, um carvalho carbonizado sob a fria luz solar; à frente, o desconhecido que se aproximava a passos lentos. A brisa, que antes fora caos, o alcançava suave e ritmadamente, quase mística. Pôde senti-la como a própria respiração da floresta. E, na sua caminhada, espreitava por entre troncos e raízes que brotavam da terra, à espera de uma ilusão, uma armadilha, uma trapaça. Nesse espreitar, ressignificou-se à imagem e semelhança do que ia sendo-lhe apresentado como sua nova vida: fora fera, fora homem, fora matéria física e éter. Hoje, era apenas o que era.
As folhas rangiam, quebravam ao toque de seus pés. Cada crec era sentido no seu âmago mais profundo, em cada glóbulo, cada neurônio, tão certo quanto aquele batimento rítmico que reverberava do núcleo da terra e subia, subia, onda a onda, compasso a compasso, junto às folhas, aos seus pés, como um tímpano obscuro, como um ataque de mil tambores seculares. Como se a natureza percussionasse a própria existência, contanto tempo e contratempo para a hecatombe final.
Foi nessa sinfonia selvagem que tomou ciência de si. Hoje, era melodia, era fluído. Abandonou sua carne e, através da temporalidade sonora, permitiu-se estar em cada folha, cada tronco, cada flor, cada raiz. Pulsava por entre os grãos de terra e flutuava entre as copas das árvores. Escorregava tons. Ascendia. Intensificava para, depois, piano, derramar-se como a água escorre melindrosa em seu curso sinuoso mas, ainda assim, certeiro. De fato, foram nelas que observou seus olhos, desesperados e antropomórficos; e as rugas que nunca o haviam pertencido, bem como seu anseio animalesco. De nada importou. Aquelas pupilas injetadas que no reflexo permaneciam também, concomitantemente, perdiam-se na água esquiva. Elas estavam ali, e em todos os lugares. Ele estava em todo lugar, cada átomo, cada formiga, cada predador. Na caça, na fruta, e em cada semente. Ele era o espírito transcendido da natureza, a força maior, selvagem, inexorável. E pôde sentir crescer dentro de si, em si, em todo lugar, a fúria dos furacões e a devastadora tempestade. A majestade magmática e o inóspito gelo. E, ao ascender, ascendia também sua consciência. Perdia-se nos acordes que emanavam da natureza, até que se convertera neles. Ele era a própria natureza, em sua beleza e fúria. Era sua própria lei natural, seu magnata e seu operário, seu imperador e seu súdito, seu juiz, seu carrasco, seu condenado. Ele era o bem e o mal. E, em toda sua glória e crueldade, tornou-se, por fim, Deus.

II
O SILÊNCIO
Silêncio. A terra cessara sua sinfonia. Como o ar que devasta o que antes era vácuo, ele tomou consciência de sua pequenez. Sentiu-se cair, como um anjo exilado, deixando um rastro de penas e sangue no céu. Cada arranhão, cada corte conquistado com o choque entre as copas das árvores o fez restringir-se às barreiras de seu corpo físico. 
Um baque surdo saudou-o novamente à Terra. Sentiu alguns ossos quebrarem. A dor, por sua vez, não estava ali. Talvez ela não existisse, talvez não estivesse pronta ainda. Talvez não fosse digno de senti-la; pois como poderia, ele pensava, o mal sofrer? O que de tão maligno poderia haver no mundo que causasse chagas as chagas, que amaldiçoasse a maldição primeira, ou que maldissesse que nunca foi bendito?
O murmuro de um riacho denunciou que se encontrava no mesmo lugar. Ademais, não era capaz de reconhecer a vida que antes pulsava ali. A selvageria natural deu lugar à inércia. Até mesmo o ar era pesado e difícil de colocar para dentro.
Levantou-se. Outros ossos esmigalharam-se, mas ainda não sentiu dor. O sol se punha. Era crepúsculo: impossível o distinguir em meio às árvores, mas seu brilho, quase mortífero, ainda lutava pelo direito ao firmamento. 
Caminhou alguns passos. As folhas não rangeram. O murmuro do riacho tornava-se cada vez mais inaudível no silêncio sólido, que emanava da terra como outrora emanava toda sua vitalidade e sua sinfonia.
Na falta do som, fez-se presente o olfato. E, ao passo que se acostumava com a surdez imposta, intoxicava-se com a mais autêntica putrefação. O cheiro de carne decomposta tocava-lhe as narinas como quem exibe orgulhoso o jantar suculento. Com água escorrendo-lhe pela boca, faminto, ele perseguiu a funesta refeição.
Não tardou a encontrar uma clareira no meio do bosque inominado. As árvores ao redor eram curvas, retorcidas e antiquíssimas, em eterna reverência ao silêncio que especialmente ali era pesado como chumbo. 
O brilho moribundo do sol morrera, e a noite já caíra quando ele resolveu adentrar o reino daquela clareira tão antiga quanto o próprio tempo, de modo que foi essencialmente pelo olfato que percebeu que sua busca chegara ao fim.
Ali, em frente aos seus pés sujos de terra, pelo menos três cadáveres apodreciam em ritmos diferentes. O primeiro, recostado em uma das árvores, era o mais conservado, ainda que sua pele enrijecida não negasse diversos sinais de putrefação. Ao observá-lo de perto, notou que um líquido negro ainda pingava de sua boca, como um vômito que ainda cessa. Da mesma boca semicerrada, um verme arrastou-se preguiçosamente para fora, pelos lábios, para a bochecha, até entocar-se, por fim, na sua narina esquerda.
O segundo corpo, também de um homem, jazia pendurado pelo pescoço numa árvore oposta. Era pele e ossos, e apresentava um nível de putrefação maior do que seu companheiro de morte. Uma de suas pernas fora arrancada brutalmente acima do joelho, no meio da coxa. Provavelmente algum animal banqueteara-se dela. Ainda assim, eram evidentes os rastros de algum ser humano que teria desbravado tal clareira, pois nenhum animal teria feito o que ele viu: uma das mãos do enforcado jazia em um ângulo de 180º, fazendo a palma aparecer onde não deveria. Assim, o condenado desenhava um macabro simulacro da lei divina: uma mão oferece; outra toma. Ele dá, Ele tira.
Por fim, o terceiro homem era quase irreconhecível. A maior parte de sua pele havia se decomposto, restando alguns poucos órgãos entre sua carcaça óssea, indistinguíveis entre os ninhos de vermes que o habitavam. Seus ossos da mão direita ainda seguravam um punhal, há muito sem fio, mas que cumprira o propósito de tirar-lhe a própria vida. Não havia mais rosto. Somente o crânio mantivera-se, eternizando um irônico sorriso num cadáver que não tinha motivos nenhum para sorrir. Eram belos dentes.

III
O VAZIO
Sucumbiu ao peso do silêncio e, lentamente, apoiou-se nos nós de um tronco próximo, deixando-se cair. Ali ficou, e contemplou a clareira que mais parecia a sala de jantar da morte. Nada que vivia poderia prosperar naquele reduto perdido no coração do bosque. Ali a natureza morrera. Não havia força, humana ou suprema, que expurgasse os vermes que parasitavam, alimentando-se da morte para sobreviverem e, por conseguinte, também mortos. Isso ele sabia; sentia ecoar em seu interior. Já não passava de nada além de uma casca, oca por dentro.
As folhas não rangeram quando ele tocou o solo com o corpo. O vento não soprou. O sangue que batucava suas têmporas tornou-se lento, lento, quando por fim também se silenciou.
O vazio inexorável que tornava a surdez insuportável curvava não apenas as árvores que circundavam a clareira, mas convergia todo o mundo naquele único ponto. Em pronto, tudo se tornara escuridão, e o mundo resumira-se àquela vegetação rasteira, àquele silêncio, aos mortos. Ao céu sem luar, às estrelas que se recusavam a brilhar à tamanha desumanidade. E, sob os ombros dele, único ser que ousava respirar, de leve, nas terras da morte, o mundo inteiro.
Tombou seus olhos ao seu redor. Logo, suas pupilas se acostumaram com a escuridão, e aprendeu a distinguir seus companheiros de clareira. Pôde reviver suas vidas, sentir suas dores: ali, na escuridão, desvendou a dor que assolou cada um dos três corações que já não batiam, sentiu o ar que seus pulmões outrora expeliam em suspiros apaixonados. Reviveu suas angustias e seus tormentos. Provou, nos próprios lábios, os beijos de outrem e o gosto de suas lágrimas. Pôde desabar em suas almas tempestuosas, naufragou docemente pelos mares de seus monstros mais íntimos, mais secretos; e velejou por suas resignações espelhadas.
Sucumbiu ao peso do mundo e, então, em um suspiro desesperado, seus ombros cederam, seu corpo cedeu, abraçando a grama morta, o ar pesado, o firmamento negro. E expandia-se, mais uma vez, mais e mais; provou cada morte, cada gota de sangue derramado, cada golpe misericordioso, fatal. Acima, sempre acima; e abaixo, expandia-se. Doou-se ao nada e, ao passo que este o dominava, nada se tornava. Até que se converteu em tudo o que ali havia. Converteu-se ao nada. Converteu-se em tudo.
Ali, recostado na árvore ao lado do enforcado, respirando não mais do que os cadáveres, tentou sentir algo. Revolta. Dor. Tristeza. Nada vinha. Sentiu a necessidade iminente de enlutar-se pelas desventuras dos desconhecidos, tentou acessar sua empatia. Nada. Forçou-se a chorar. Clamou pelas lágrimas mais intensas e mais salgadas que poderia conjurar e, no entanto, seu olhar de chapas de aço continuava implacável, opaco, indiferentes, inacessíveis.
Amaldiçoou-se por sua frieza, e em parte isso foi capaz de concluir. Pois como a morte poderia lamentar a própria morte? Como um moribundo poderia encarar a escuridão eterna com maus olhos? Pois eu estou morrendo, ele pensava. E tão logo concluiu sua hipótese, insetos passaram a romper-lhe a pele, de dentro para fora, escapando-lhe de suas entranhas, matando-o. Sentiu (e seria uma das últimas das suas sensações físicas) o coração acelerar desprovido de qualquer emoção ou sentimento. Apalpou o peito em tempo de sentir seu músculo explodindo em milhares de vermes que fugiam do seu ser, como o sangue flui de quem é ferido. Ora, veja, pensava: eis que meu próprio ser banqueteia-se com minha própria carne. Eis o que sou. Eis a desgraça da minha existência.
Tocou uma última vez o coração. Roubou um verme robusto. Preso entre o indicador e o polegar gangrenados, o verme contorcia-se no próprio eixo, inutilmente, até que ele o levou à boca. Mastigou. Saboreou. Sorveu.  A existência era tão repugnante quanto o verme fora saboroso ao seu paladar. Ria internamente, enquanto desfazia-se em podridão: um brinde à vida no altar da morte.

IV
O SALVADOR
Abriu os olhos. A loucura desaparecera. Tocou seu peito e não sentiu nenhum verme corroendo-lhe as carnes, nenhum inseto que rasgava sua pele. A clareira, o silêncio palpável, a escuridão, os cadáveres, entretanto, ainda estavam ali. O mundo ainda era tudo aquilo e apenas aquilo, e mover-se sob o peso do vazio ainda era difícil.
Recordou o gosto do verme que saboreara momentos antes, entre seus delírios. Seu estômago contorceu-se, revoltou-se e revirou-se. De quatro, novamente, pôs-se a vomitar veementemente, tal o asco da lembrança. Botou para fora tudo o que tinha dentro de si, e o que não tinha também: primeiro, vomitou uma pasta bege, cheia de pelotas. Depois, queimando-lhe o esôfago e a garganta, vomitou a bile, ácida e amarela. Por fim, um líquido negro indistinguível, quente, áspero e amargo.
Recostando novamente na árvore, sentiu seus olhos lacrimejarem tamanho o esforço físico desprendido na purificação de seu corpo. Arfava, buscando desesperadamente um ar denso que recusava satisfazer-lhe. Levava seus olhos dos cadáveres ao vômito, e deles novamente aos mortos. Pensou, então, em meio às suas contemplações, ter visto algo robusto, liso, viscoso, retorcer-se entre seu vômito. Ainda assim não se deteve por muito tempo, pois, pela primeira vez - em dias? Anos? - fez-se luz.
Primeiramente, tímida e distante, entre as árvores, em meio ao bosque, para lá da clareira. Depois, mais forte, sempre à altura dos olhos.
Ele se levantou com dificuldade, e encarou aquela luz opaca que aos poucos mostrava emanar de um homem que ia ao seu encontro. Ele possuía cabelos bastos, ora negros, ora dourados, que descansavam em ondas largas pela sua cabeça. Os olhos eram negros e rotundos, anunciando um rosto sem barba e igualmente redondo e bondoso. Os ombros eram largos e imponentes. Usava uma túnica vinho que balançava sob um vento que a clareira não sentia. Os pés estavam descalços, e pisavam por entre raízes e espinhos sem que nenhuma ferida fosse aberta. O sangue fluía tão selvagem no estranho que todo o silêncio tornou-se o som das têmporas dele; e de todo aquele corpo brilhava uma aura perolada, suficiente para fustigar os olhos, mas não para iluminar toda a clareira.
Àquela visão, pela primeira vez desde que sucumbira ao vazio, ele chorou. E todas as lágrimas que deveriam ter nascido ao contemplar os mortos, todo o sentimento que ele rogou para sentir momentos antes, transbordou-lhe agora, aos borbotões. Lágrimas descontroladas fluíram como rios salubres que desbravavam seu rosto arruinado, e os soluços não o deixavam respirar. Recordou a dor de todo aquele local que há pouco provara, e finalmente sentiu como se não fosse capaz de suportá-la por mais nenhum segundo. Recordou os tormentos que cada cadáver que ali jazia sentiu em vida, relembrou seus amores, suas glórias e suas quedas e, quando não pode mais suportar tamanho sofrimento que lhe rompia o coração, deixou-se cair.
Não tocou o chão. Sentiu algo morno quando deveria sentir a relva gelada. Cessou, aos poucos, seu pranto doloroso, e abriu os olhos. O homem, que consigo trouxera a luz, amparara-lhe a queda, e segurou-o entre seus braços. 
Ali, com as costas apoiadas nos braços do estranho, encarando de perto seus olhos profundos, ele sentiu-se em paz. Calou as lágrimas, calou os soluços. Deixou-se embalar pelo toque morno do desconhecido, pela luz que agora já era agradável. Suspirou. Aquilo era, por fim, a salvação.
Ousou sorrir. Sorriu. O homem luminoso respondeu o sorriso, e também arqueou os lábios.
Logo após, pela primeira vez, falou. E de sua boca escapou o hálito de milhares de cadáveres decompostos. Seus dentes eram afiados como as presas das feras, e sua língua era negra e pontuda. Seus olhos se arregalaram e suas pupilas se injetaram quando disse:
-Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
E, sem aviso, o esbofeteou.
Com a força do tapa, ele foi jogado à relva gelada. O mundo girou por alguns instantes, e ele sentiu o gosto de sangue na boca. Tentou se levantar. De quatro, percebeu que do seu vômito negro um verme escapava e rastejava vigorosamente para o cadáver mais próximo.
Antes que pudesse compreender que havia, o homem estranho o agarrou pelos cabelos e o levantou até que seus pés não tocavam mais o chão. Só agora percebeu o quão ele era alto.
Uma segunda vez, o braço luminoso do homem caiu-lhe sobre o rosto, fazendo-o cair, agora, mais longe. 
Cuspiu alguns dentes. O mundo voltara a girar. À sua esquerda, ouviu um farfalhar de asas, e pensou ter visto os pés do demônio o seguindo e chutando-o na barriga, nas costas, com toda a força. Rolou alguns metros. Olhou à frente, em um desespero que não se revelava. Não via mais os cadáveres.
Pela segunda vez, o homem luminoso agarrou-lhe pelos cabelos e, pela terceira vez, amparou-lhe nos braços ainda bondosamente mornos e aconchegantes. O próximo golpe haveria de ser o fatal. Ainda assim, o medo, o desespero, o pânico se recusavam a manifestar-se em seu âmago. Tudo estava completo agora, ele pensava. Ele não era nada. Ao nada, nada se teme.
Pensou ouvir, ao longe, risos, conversas ansiosas. Três vozes de homens distintas que, entrosados entre si, deveriam assistir à sua decadência. Lembrou-se da ausência dos cadáveres. Ah, pensou, quanta ironia. Virou lentamente os olhos para o que ainda se via da clareira, e lá estavam eles: três homens, perfeitamente vivos, bocas semiabertas, transbordando uma expectativa palpável, ansiosos para o abatimento do sacrifício. Ele fixou seus olhos nos três pares de olhos dos que já não estavam mortos, E ele pode ver, nas seis pupilas que o encaravam de volta, cada organismo vivo da floresta pela qual um dia caminhou, toda a pura selvageria que um dia inflamou-lhe o peito e o fez transcender.
Voltou os olhos para o homem que o amparava. Viu, no fundo de suas pupilas felinas e impiedosas, talvez, um rastro de bondade; e ali reconheceu os olhos do seu salvador, que levantou seu braço direito uma última vez. A salvação é iminente, ele pensou.
O braço caiu. A escuridão abateu-se sobre ele, que não foi capaz de ver o sol nascer no instante seguinte, ou o canário que cantava num carvalho que não estava mais queimado; ou o orvalho que atapetava as folhas; muito menos a flor solitária que nascera no meio de uma clareira deserta.


[Fernando M. Minighiti][21.10.2017][2:20]


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