I
O
SOM
Quando ele
acordou, a escuridão caía sobre ele com o peso do céu. Encontrou-se
despedaçado. Seu corpo jazia entre o negrume, fragmentado. Seus olhos
independentes fitaram, entre nervos e sangue, sua cabeça chamuscada: as órbitas
vazias se contrapunham à suavidade dos lábios que, ainda que carbonizados,
repousavam tranquilos, sem ceder ao horror da carnificina. Alguém a decepara –
ele se lembrava do beijo da lâmina, mas não sabia se fora antes ou depois do
fogo.
Rodou seu globo
ocular ensanguentado, e logo ali estavam suas pernas. Adiante, os braços. Ao
lado, o tórax - uma cratera abria-se em seu peito, e estilhaços das
costelas jaziam por todos os lugares. Viu os pulmões negros, murchos, secos,
enrugados como o tronco de uma árvore carbonizada, e percebeu, em sua ausência,
o coração faltante - inchado, transfigurado.
O silêncio
sepulcral foi cortado, então, pelo som de uma brisa que cortava o nada onde se
encontrava. Sentia-a nos nervos. Tentou piscar, mas não pode. Foi quando a
brisa converteu-se num inexorável vendaval, como que conjurado pelos lábios de
um deus. E no caos, tão denso quanto a própria escuridão, tudo foi levado,
sacudido; ele e o nada, todos subjugados pela celestial força divina,
implacável e destruidora.
E quando pensava
não ter mais nenhum sopro de vida, quando se perdeu de si e do vazio, tão
subitamente como começara, tudo cessou.
De uma pilha de
ossos, carne, sangue e podridão, ele se ergueu. As mãos trêmulas tocaram o
próprio corpo, velho, mas ainda assim novo. Os dedos finos escorregaram pelo
rosto, pelo pescoço novamente inteiro. Detiveram-se em seu peito - sentiu seus
ossos e o bater do coração. Tudo era o mesmo, mas a experimentação de sua forma
física era sempre uma experiência nova, de modo que, internamente, sua mente bradou
silenciosamente o regozijo de ser novamente una - ainda que sua pela estivesse
fina, esticada, como que gasta por anos de amolação.
Lentamente, como
fera, de quatro, deu seus primeiros passos. Sentiu a grama sob a palma das mãos
e o cheiro do orvalho matutino. Enfim, não era mais apenas escuridão, e o nada
se convertera em alguma coisa. Suas
articulações rangeram quando se tornou bípede mais uma vez. Seus joelhos
fraquejaram por alguns momentos, rangeram novamente; seus braços tateavam o ar
em busca de equilíbrio. Levantou-se.
Deitou os olhos
ao seu redor. Era uma floresta. Troncos seculares espalhavam-se, belos e
temerosos, até onde a vista alcançava. Atrás de si, um carvalho carbonizado sob
a fria luz solar; à frente, o desconhecido que se aproximava a passos lentos. A
brisa, que antes fora caos, o alcançava suave e ritmadamente, quase mística.
Pôde senti-la como a própria respiração da floresta. E, na sua caminhada,
espreitava por entre troncos e raízes que brotavam da terra, à espera de uma
ilusão, uma armadilha, uma trapaça. Nesse espreitar, ressignificou-se à imagem
e semelhança do que ia sendo-lhe apresentado como sua nova vida: fora fera,
fora homem, fora matéria física e éter. Hoje, era apenas o que era.
As folhas
rangiam, quebravam ao toque de seus pés. Cada crec era sentido
no seu âmago mais profundo, em cada glóbulo, cada neurônio, tão certo quanto
aquele batimento rítmico que reverberava do núcleo da terra e subia, subia, onda a onda, compasso a compasso,
junto às folhas, aos seus pés, como um tímpano obscuro, como um ataque de mil
tambores seculares. Como se a natureza percussionasse a própria existência,
contanto tempo e contratempo para a hecatombe final.
Foi nessa
sinfonia selvagem que tomou ciência de si. Hoje, era melodia, era fluído. Abandonou
sua carne e, através da temporalidade sonora, permitiu-se estar em cada folha,
cada tronco, cada flor, cada raiz. Pulsava por entre os grãos de terra e
flutuava entre as copas das árvores. Escorregava tons. Ascendia. Intensificava
para, depois, piano, derramar-se como a água escorre melindrosa em
seu curso sinuoso mas, ainda assim, certeiro. De fato, foram nelas que observou
seus olhos, desesperados e antropomórficos; e as rugas que nunca o haviam
pertencido, bem como seu anseio animalesco. De nada importou. Aquelas pupilas
injetadas que no reflexo permaneciam também, concomitantemente, perdiam-se na
água esquiva. Elas estavam ali, e em todos os lugares. Ele estava
em todo lugar, cada átomo, cada formiga, cada predador. Na caça, na fruta, e em
cada semente. Ele era o espírito transcendido da natureza, a força maior,
selvagem, inexorável. E pôde sentir crescer dentro de si, em si,
em todo lugar, a fúria dos furacões e a devastadora tempestade. A majestade magmática
e o inóspito gelo. E, ao ascender, ascendia também sua consciência. Perdia-se
nos acordes que emanavam da natureza, até que se convertera neles. Ele era a
própria natureza, em sua beleza e fúria. Era sua própria lei natural, seu
magnata e seu operário, seu imperador e seu súdito, seu juiz, seu carrasco, seu
condenado. Ele era o bem e o mal. E, em toda sua glória e crueldade, tornou-se,
por fim, Deus.
II
O
SILÊNCIO
Silêncio. A
terra cessara sua sinfonia. Como o ar que devasta o que antes era vácuo, ele
tomou consciência de sua pequenez. Sentiu-se cair, como um anjo exilado,
deixando um rastro de penas e sangue no céu. Cada arranhão, cada corte
conquistado com o choque entre as copas das árvores o fez restringir-se às
barreiras de seu corpo físico.
Um baque surdo
saudou-o novamente à Terra. Sentiu alguns ossos quebrarem. A dor, por sua vez,
não estava ali. Talvez ela não existisse, talvez não estivesse pronta ainda.
Talvez não fosse digno de senti-la; pois
como poderia, ele pensava, o mal
sofrer? O que de tão maligno poderia haver no mundo que causasse chagas as
chagas, que amaldiçoasse a maldição primeira, ou que maldissesse que nunca foi
bendito?
O murmuro de um
riacho denunciou que se encontrava no mesmo lugar. Ademais, não era capaz de
reconhecer a vida que antes pulsava ali. A selvageria natural deu lugar à
inércia. Até mesmo o ar era pesado e difícil de colocar para dentro.
Levantou-se.
Outros ossos esmigalharam-se, mas ainda não sentiu dor. O sol se punha. Era
crepúsculo: impossível o distinguir em meio às árvores, mas seu brilho, quase
mortífero, ainda lutava pelo direito ao firmamento.
Caminhou alguns
passos. As folhas não rangeram. O murmuro do riacho tornava-se cada vez mais
inaudível no silêncio sólido, que emanava da terra como outrora emanava toda
sua vitalidade e sua sinfonia.
Na falta do som,
fez-se presente o olfato. E, ao passo que se acostumava com a surdez imposta,
intoxicava-se com a mais autêntica putrefação. O cheiro de carne decomposta
tocava-lhe as narinas como quem exibe orgulhoso o jantar suculento. Com água
escorrendo-lhe pela boca, faminto, ele perseguiu a funesta refeição.
Não tardou a
encontrar uma clareira no meio do bosque inominado. As árvores ao redor eram
curvas, retorcidas e antiquíssimas, em eterna reverência ao silêncio que
especialmente ali era pesado como chumbo.
O brilho
moribundo do sol morrera, e a noite já caíra quando ele resolveu adentrar o
reino daquela clareira tão antiga quanto o próprio tempo, de modo que foi
essencialmente pelo olfato que percebeu que sua busca chegara ao fim.
Ali, em frente
aos seus pés sujos de terra, pelo menos três cadáveres apodreciam em ritmos
diferentes. O primeiro, recostado em uma das árvores, era o mais conservado,
ainda que sua pele enrijecida não negasse diversos sinais de putrefação. Ao
observá-lo de perto, notou que um líquido negro ainda pingava de sua boca, como
um vômito que ainda cessa. Da mesma boca semicerrada, um verme arrastou-se
preguiçosamente para fora, pelos lábios, para a bochecha, até entocar-se, por
fim, na sua narina esquerda.
O segundo corpo,
também de um homem, jazia pendurado pelo pescoço numa árvore oposta. Era pele e
ossos, e apresentava um nível de putrefação maior do que seu companheiro de
morte. Uma de suas pernas fora arrancada brutalmente acima do joelho, no meio
da coxa. Provavelmente algum animal banqueteara-se dela. Ainda assim, eram
evidentes os rastros de algum ser humano que teria desbravado tal clareira,
pois nenhum animal teria feito o que ele viu: uma das mãos do enforcado jazia
em um ângulo de 180º, fazendo a palma aparecer onde não deveria. Assim, o
condenado desenhava um macabro simulacro da lei divina: uma mão oferece; outra
toma. Ele dá, Ele tira.
Por fim, o
terceiro homem era quase irreconhecível. A maior parte de sua pele havia se
decomposto, restando alguns poucos órgãos entre sua carcaça óssea, indistinguíveis
entre os ninhos de vermes que o habitavam. Seus ossos da mão direita ainda
seguravam um punhal, há muito sem fio, mas que cumprira o propósito de
tirar-lhe a própria vida. Não havia mais rosto. Somente o crânio mantivera-se,
eternizando um irônico sorriso num cadáver que não tinha motivos nenhum para
sorrir. Eram belos dentes.
III
O
VAZIO
Sucumbiu ao peso do silêncio e, lentamente, apoiou-se nos
nós de um tronco próximo, deixando-se cair. Ali ficou, e contemplou a clareira
que mais parecia a sala de jantar da morte. Nada que vivia poderia prosperar
naquele reduto perdido no coração do bosque. Ali a natureza morrera. Não havia
força, humana ou suprema, que expurgasse os vermes que parasitavam,
alimentando-se da morte para sobreviverem e, por conseguinte, também mortos.
Isso ele sabia; sentia ecoar em seu interior. Já não passava de nada além de
uma casca, oca por dentro.
As folhas não rangeram quando ele tocou o solo com o corpo.
O vento não soprou. O sangue que batucava suas têmporas tornou-se lento, lento,
quando por fim também se silenciou.
O vazio inexorável que tornava a surdez insuportável
curvava não apenas as árvores que circundavam a clareira, mas convergia todo o
mundo naquele único ponto. Em pronto, tudo se tornara escuridão, e o mundo
resumira-se àquela vegetação rasteira, àquele silêncio, aos mortos. Ao céu sem
luar, às estrelas que se recusavam a brilhar à tamanha desumanidade. E, sob os
ombros dele, único ser que ousava respirar, de leve, nas terras da morte, o
mundo inteiro.
Tombou seus olhos ao seu redor. Logo, suas pupilas se
acostumaram com a escuridão, e aprendeu a distinguir seus companheiros de
clareira. Pôde reviver suas vidas, sentir suas dores: ali, na escuridão,
desvendou a dor que assolou cada um dos três corações que já não batiam, sentiu
o ar que seus pulmões outrora expeliam em suspiros apaixonados. Reviveu suas
angustias e seus tormentos. Provou, nos próprios lábios, os beijos de outrem e
o gosto de suas lágrimas. Pôde desabar em suas almas tempestuosas, naufragou
docemente pelos mares de seus monstros mais íntimos, mais secretos; e velejou
por suas resignações espelhadas.
Sucumbiu ao peso do mundo e, então, em um suspiro desesperado,
seus ombros cederam, seu corpo cedeu, abraçando a grama morta, o ar pesado, o
firmamento negro. E expandia-se, mais uma vez, mais e mais; provou cada morte,
cada gota de sangue derramado, cada golpe misericordioso, fatal. Acima, sempre
acima; e abaixo, expandia-se. Doou-se ao nada e, ao passo que este o dominava,
nada se tornava. Até que se converteu em tudo o que ali havia. Converteu-se ao
nada. Converteu-se em tudo.
Ali, recostado na árvore ao lado do enforcado, respirando
não mais do que os cadáveres, tentou sentir algo. Revolta. Dor. Tristeza. Nada
vinha. Sentiu a necessidade iminente de enlutar-se pelas desventuras dos
desconhecidos, tentou acessar sua empatia. Nada. Forçou-se a chorar. Clamou
pelas lágrimas mais intensas e mais salgadas que poderia conjurar e, no
entanto, seu olhar de chapas de aço continuava implacável, opaco, indiferentes,
inacessíveis.
Amaldiçoou-se por sua frieza, e em parte isso foi capaz de concluir. Pois como a
morte poderia lamentar a própria morte? Como um moribundo poderia encarar a escuridão
eterna com maus olhos? Pois eu estou
morrendo, ele pensava. E tão logo concluiu sua hipótese, insetos passaram a
romper-lhe a pele, de dentro para fora, escapando-lhe de suas entranhas,
matando-o. Sentiu (e seria uma das últimas das suas sensações físicas) o
coração acelerar desprovido de qualquer emoção ou sentimento. Apalpou o peito
em tempo de sentir seu músculo explodindo em milhares de vermes que fugiam do
seu ser, como o sangue flui de quem é ferido. Ora, veja, pensava: eis que
meu próprio ser banqueteia-se com minha própria carne. Eis o que sou. Eis a
desgraça da minha existência.
Tocou uma última vez o coração. Roubou um verme robusto.
Preso entre o indicador e o polegar gangrenados, o verme contorcia-se no
próprio eixo, inutilmente, até que ele o levou à boca. Mastigou. Saboreou.
Sorveu. A existência era tão repugnante quanto o verme fora saboroso ao
seu paladar. Ria internamente, enquanto desfazia-se em podridão: um brinde à vida no altar da morte.
IV
O SALVADOR
Abriu os olhos. A loucura desaparecera. Tocou seu peito e
não sentiu nenhum verme corroendo-lhe as carnes, nenhum inseto que rasgava sua
pele. A clareira, o silêncio palpável, a escuridão, os cadáveres, entretanto,
ainda estavam ali. O mundo ainda era tudo aquilo e apenas aquilo, e mover-se
sob o peso do vazio ainda era difícil.
Recordou o gosto do verme que saboreara momentos antes,
entre seus delírios. Seu estômago contorceu-se, revoltou-se e revirou-se. De
quatro, novamente, pôs-se a vomitar veementemente, tal o asco da lembrança.
Botou para fora tudo o que tinha dentro de si, e o que não tinha também:
primeiro, vomitou uma pasta bege, cheia de pelotas. Depois, queimando-lhe o
esôfago e a garganta, vomitou a bile, ácida e amarela. Por fim, um líquido
negro indistinguível, quente, áspero e amargo.
Recostando novamente na árvore, sentiu seus olhos
lacrimejarem tamanho o esforço físico desprendido na purificação de seu corpo.
Arfava, buscando desesperadamente um ar denso que recusava satisfazer-lhe.
Levava seus olhos dos cadáveres ao vômito, e deles novamente aos mortos.
Pensou, então, em meio às suas contemplações, ter visto algo robusto, liso,
viscoso, retorcer-se entre seu vômito. Ainda assim não se deteve por muito
tempo, pois, pela primeira vez - em dias? Anos? - fez-se luz.
Primeiramente, tímida e distante, entre as árvores, em meio
ao bosque, para lá da clareira. Depois, mais forte, sempre à altura dos olhos.
Ele se levantou com dificuldade, e encarou aquela luz opaca
que aos poucos mostrava emanar de um homem que ia ao seu encontro. Ele possuía
cabelos bastos, ora negros, ora dourados, que descansavam em ondas largas pela
sua cabeça. Os olhos eram negros e rotundos, anunciando um rosto sem barba e
igualmente redondo e bondoso. Os ombros eram largos e imponentes. Usava uma
túnica vinho que balançava sob um vento que a clareira não sentia. Os pés
estavam descalços, e pisavam por entre raízes e espinhos sem que nenhuma ferida
fosse aberta. O sangue fluía tão selvagem no estranho que todo o silêncio tornou-se
o som das têmporas dele; e de todo aquele corpo brilhava uma aura perolada,
suficiente para fustigar os olhos, mas não para iluminar toda a clareira.
Àquela visão, pela primeira vez desde que sucumbira ao
vazio, ele chorou. E todas as lágrimas que deveriam ter nascido ao contemplar
os mortos, todo o sentimento que ele rogou para sentir momentos antes,
transbordou-lhe agora, aos borbotões. Lágrimas descontroladas fluíram como rios
salubres que desbravavam seu rosto arruinado, e os soluços não o deixavam
respirar. Recordou a dor de todo aquele local que há pouco provara, e
finalmente sentiu como se não fosse capaz de suportá-la por mais nenhum
segundo. Recordou os tormentos que cada cadáver que ali jazia sentiu em vida,
relembrou seus amores, suas glórias e suas quedas e, quando não pode mais
suportar tamanho sofrimento que lhe rompia o coração, deixou-se cair.
Não tocou o chão. Sentiu algo morno quando deveria sentir a
relva gelada. Cessou, aos poucos, seu pranto doloroso, e abriu os olhos. O
homem, que consigo trouxera a luz, amparara-lhe a queda, e segurou-o entre seus
braços.
Ali, com as costas apoiadas nos braços do estranho,
encarando de perto seus olhos profundos, ele sentiu-se em paz. Calou as
lágrimas, calou os soluços. Deixou-se embalar pelo toque morno do desconhecido,
pela luz que agora já era agradável. Suspirou. Aquilo era, por fim, a salvação.
Ousou sorrir. Sorriu. O homem luminoso respondeu o sorriso,
e também arqueou os lábios.
Logo após, pela primeira vez, falou. E de sua boca escapou
o hálito de milhares de cadáveres decompostos. Seus dentes eram afiados como as
presas das feras, e sua língua era negra e pontuda. Seus olhos se arregalaram e
suas pupilas se injetaram quando disse:
-Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
E, sem aviso, o esbofeteou.
Com a força do tapa, ele foi jogado à relva gelada. O mundo
girou por alguns instantes, e ele sentiu o gosto de sangue na boca. Tentou se
levantar. De quatro, percebeu que do seu vômito negro um verme escapava e
rastejava vigorosamente para o cadáver mais próximo.
Antes que pudesse compreender que havia, o homem estranho o
agarrou pelos cabelos e o levantou até que seus pés não tocavam mais o chão. Só
agora percebeu o quão ele era alto.
Uma segunda vez, o braço luminoso do homem caiu-lhe sobre o
rosto, fazendo-o cair, agora, mais longe.
Cuspiu alguns dentes. O mundo voltara a girar. À sua esquerda,
ouviu um farfalhar de asas, e pensou ter visto os pés do demônio o seguindo e
chutando-o na barriga, nas costas, com toda a força. Rolou alguns metros. Olhou
à frente, em um desespero que não se revelava. Não via mais os cadáveres.
Pela segunda vez, o homem luminoso agarrou-lhe pelos
cabelos e, pela terceira vez, amparou-lhe nos braços ainda bondosamente mornos
e aconchegantes. O próximo golpe haveria de ser o fatal. Ainda assim, o medo, o
desespero, o pânico se recusavam a manifestar-se em seu âmago. Tudo estava
completo agora, ele pensava. Ele não era nada. Ao nada, nada se teme.
Pensou ouvir, ao longe, risos, conversas ansiosas. Três
vozes de homens distintas que, entrosados entre si, deveriam assistir à sua
decadência. Lembrou-se da ausência dos cadáveres. Ah, pensou, quanta ironia.
Virou lentamente os olhos para o que ainda se via da clareira, e lá estavam
eles: três homens, perfeitamente vivos, bocas semiabertas, transbordando uma
expectativa palpável, ansiosos para o abatimento do sacrifício. Ele fixou seus
olhos nos três pares de olhos dos que já não estavam mortos, E ele pode ver,
nas seis pupilas que o encaravam de volta, cada organismo vivo da floresta pela
qual um dia caminhou, toda a pura selvageria que um dia inflamou-lhe o peito e
o fez transcender.
Voltou os olhos para o homem que o amparava. Viu, no fundo
de suas pupilas felinas e impiedosas, talvez, um rastro de bondade; e ali
reconheceu os olhos do seu salvador, que levantou seu braço direito uma última
vez. A salvação é iminente, ele
pensou.
O braço caiu. A escuridão abateu-se sobre ele, que não foi
capaz de ver o sol nascer no instante seguinte, ou o canário que cantava num
carvalho que não estava mais queimado; ou o orvalho que atapetava as folhas;
muito menos a flor solitária que nascera no meio de uma clareira deserta.
[Fernando M. Minighiti][21.10.2017][2:20]
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