terça-feira, 4 de maio de 2010

Anita

14 de Novembro de 1941 -  Anita sentia o ar salgado da praia deserta. O vento despenteava seus cabelos outrora meticulosamente tratado. Sentia a agua morna do mar noturno nos seus pés nus. Ela também ouvia a arrebentação. O doce som do mar. o mar, cristalino e verde como outrora foram os seus olhos; o mar, que lhe traziam tantas recordações. O mar, que diluía-se no oceano para sempre se perder.

***

07 de Novembro de 1941 - Anita bordava um dos cantos do lençol que faria parte do seu enxoval.
Era uma flor.
O amor, dizia a avó de Anita, é como uma linda rosa. Apesar das dificuldades, é lindo e prazeroso - como os espinhos que arruínam seu caule, sem depravar suas pétalas. - mas perecível, pois, como a rosa, e todas as flores, ele morre.
Anita discordava. O amor não pode ser tão frágil assim.
Acontece que Anita era uma sonhadora. Sempre escutava aquelas rádio-novelas românticas com sua mãe e aprendia la coisas como não sei viver sem ter você, te amarei para a vida inteira ou o amor move montanhas. O amor não poderia ser tão precário assim. Logo, ela bordava em todas as peças de seu enxoval rosas. Rosas que nunca pereceram, rosas que nunca machucariam com seus espinhos. Rosas para sempre, como seu amor.
À companhia de sua mãe, sua única parente viva, que bordava um dos cantos do lençol, Anita bordava as rosas no outro canto. As duas trabalhavam anormalmente quietas. A radio novela fora substituída por noticiários - um dos poucos noticiários controlados naqueles tempos de guerra.
Ela aguardava a lista dos mortos.
Mesmo com a sinistra atmosfera que rondava Anita, ela não conseguia parar de pensar nos acontecimentos dos anos passados:

Ela encontrara o homem de sua vida.
Militar francês, que viajou para a Itália, Omar tinha conquistado seu coração de norte a sul.
Descendente de uma família influente, era sozinho no mundo. Seu pai morrera na Primeira Guerra Mundial. Sua mãe morrera no parto do seu único filho. Desde então, Omar é sozinho. Herdeiro de uma grande fortuna, vivia sozinho de corpo e coração, na sua enorme casa, até conhecer Anita.
Seus olhos verdes como o oceano despertaram em Omar algo que ele pensou que jamais sentiria outra vez:
Amor.
Amor este que se tornou em uma paixão arrebatadora e incontrolável.
Se conheciam a menos de um vez quando, com a bênção da mãe de Anita, iniciaram o noivado, e os longos preparativos para seu casamento.
-Está realmente decidida, minha filha? - perguntara certa vez sua mãe.
-Mais do que em toda minha vida, mamãe. Sinto como se já conhecesse Omar de algum lugar. De outro país, de outra vida. É com ele que devo me casar. Se não com ele, com ninguém: meu coração já foi preenchido.
De tempos em tempos sua mãe a alertava para o que sua avó dizia sobre amor e flores. Anita acreditava que seu amor não era como uma simples flor. Ele não murcharia, não pereceria jamais. Foi então que começou a retratar seu amor nas peças do seu enxoval: rosas em seu esplendor, que nunca iriam morrer no tecido.
Foi em uma dessas tardes que Omar a visitou, contando-lhe a funesta noticia que havia sido convocado para a guerra. A segunda guerra mundial.
-Não quero que esteja fadado ao destino de seu pai! - dissera-lhe uma Anita angustiada.
-Eu voltarei - ele tentava a acalmar.
-Certa vez minha avó disse que o amor é como uma rosa. Belo, mas morre.
-Não diga isto, meu amor - ele a abraçara - nosso amor é como as rosas que você borda: jamais morrerá. Estaria mentindo se dissesse que meu coração não protesta diante da ideia de te deixar, mas sei que voltarei.
-Meu coração é seu e só seu. - dissera Anita, soluçando - não cogite a ideia de não nos vermos mais! Preferiria a morte!
-E você não cogite a ideia da morte. Não vivo sem você, Anita. Acredite, voltarei. E quando sentir saudades, vá até o mar. - ela o olhou nos olhos - vá até o mar verde como seus olhos, e eu estarei contigo. Pois, aonde eu estiver, olharei para o oceano e não verei o mar, mas sim a imensidão de seus olhos verdes, tão misteriosos, profundos ou belo quanto o mar. Seus olhos serão meu mar, Anita.
"Seus olhos serão meu mar, Anita"


Essa frase só saiu da memória de Anita quando ela percebeu que tinha derramado uma lágrima, grossa e pesada, e que deixara cair o instrumento que usava para bordar seu enxoval.
Mais uma lágrima silenciosa caiu e só depois ela conseguiu se dar conta do por que:
O locutor anunciara Omar August Perond como o a ultima vitima que a Segunda Guerra Mundial fizera até o momento.

***

14 de Novembro de 1941 - Fazia uma semana que Oliva, mãe de Anita, não a ouvia a filha falar. Desde o anuncio da morte de Omar ela andava pelos cantos da casa contendo lágrimas. Também não comia ou petiscava algo. Bebia um pouco de água por necessidade. Emagrecera drasticamente nessa ultima semana e não se cuidava mais.
Oliva amanheceu o dia 14 de Novembro como qualquer outro, a exceção de que eram meio dia passados e Anita não saíra ainda do quarto. Compadecendo-se da dor da filha, a mãe não a forçara a nada, e a deixou em paz, sozinha em seu quarto.

***

Seus olhos serão meu mar, Anita, pensava a todo instante Anita trancada em seu quarto.
Agora, não há mais mar para ser visto.
Agora, não há mais mar.

***

À noite do mesmo dia, Oliva bateu a porta do quarto de Anita. Nada. Bateu mais uma vez, mais forte. Nada.
Ouvindo seu desespero, vizinhos apareceram e se amontoaram na casa de Oliva. Após ser contada a historia para as pessoas, um homem chamado Patrício, jovem, porem vigoroso, conseguiu arrombar a porta do quarto.
Primeiro, Oliva entrou, depois, aos poucos, a multidão.
O quarto estava meticulosamente arrumado. Nada de anormal foi notado por Oliva, a não ser de o quarto estar vazio, com a janela escancarada. Anita não estava lá; e por um bilhete sobre a cama, ao lado de algo que olivia não adivinhou a primeira vista.

***

O mar, que lhe trazia tantas recordações, agora tocava suavemente as pernas de Anita.
Agora não há mais o mar , pensava, quanto caminhava ás cegas, sentindo as águas subiram-lhe cada vez mais, ate chegar á sua cintura e depois nos seios.
agora não há mais o mar.
o mar...
Omar...
Omar, o meu amor.
O mar, que vai me levar uma ultima e eterna vez para o seu lado.
Deu mais alguns passos.
Então, uma onda maior que o normal, como se feita pelo próprio Poseidon, derrubou Anita, e ela foi levada cada vez mais adiante e mais fundo.
Por um momento, Anita recusou-se a respirar debaixo d'agua. Seus instintos a impediam.
Foi quando ela pensou ver, mesmo que não pudesse mais, o mar.
Simplesmente o mar.
E, nele, como quem a chamasse, Omar.
O mar...
E ela respirou. Para seu alivio, a dor laciante em seus pulmões durou menos que um segundo.
Então, tudo ficou negro. Depois, alvo como a luz do amanhecer ao mar.

***

Oliva pegou o bilhete deixado por Anita em sua cama, e leu em meio a soluços:

“Certa vez disse-lhe que meu coração já havia sido preenchido, e que se não me casasse com Omar, com ninguém me casaria.
Também disse-lhe certa vez que parecia que já nos conhecia-mos de outro lugar, outra vida.
agora, tenho mais certeza do que nunca!
Perdoe-me
Anita.”

Ao lado do bilhete, Oliva percebeu que haviam dois globos oculares como os de Anita: Verdes cristalinos como o mar – arruinados pelo sangue.
O silencio da multidão era mortal.

***

Até hoje se conta a historia de Anita naquela província da Itália. Com o passar do tempo e das gerações, detalhes se perderam, e não se sabe se Oliva jogou os olhos de Anita no mar, para onde deveriam retornar, afinal, ou se ela os guardou até se deteriorar, ou mesmo se ela os enterrou sob as raízes da árvore preferida de Anita, onde ela sempre gostava de se recostar em sua sombra para ler.
Sabe-se apenas que os dois casarões ainda estão lá, desocupados e intactos, como eram naquela época, em respeito e memória ao sofrimento de Anita e Oliva, e que, ainda hoje, quando às tardezinhas, quando o sol esbanja seu brilho cor de sangue no mar, as pessoas ainda se lembram e sentem que estão sendo vistas pelos doces olhos de Anita.


[Fernando M. Minighiti][04.03.2010]

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