segunda-feira, 29 de junho de 2015

Estações

No outono, ele se atrasou três horas para voltar para a casa. Deliberadamente. Isso porque aquele outono pareceu uma primavera.  Sentou na mesa daquele bar tão inesperadamente como as azaléias desabrocham sem aviso prévio. Dividiu 4l e 200ml e dançou seus erros como se fosse a Valsa das Flores.  E aquele muro,  de repente, não era um muro,  mas os portões do paraíso,  e sua língua, a escada para a salvação. Pagou sua conta com direito justo, que acabou tão rápido como o outono deve acabar.
No inverno,  ele não queria mais se atrasar para voltar para casa,  porque ele não queria voltar para casa.  E as vezes não voltava.  Só às vezes. E aquele inverno foi intenso, como todos os invernos, mas foi quente.  Quente porque o corpo humano é quente, e os olhos eram fogo vivo.  Quente por que a coberta era felpuda,  o colchão era felpudo,  o tapete era felpudo, o sofá era felpudo. E até o coração era felpudo, mas isso passou despercebido.  E o álcool já não era tão frequente.  Os 4l e 200ml eram metabolizados, e a Valsa das Flores ainda tocava. E o muro, que era o portão do paraíso, tornou se ícone,  e as línguas,  que eram as suas escadarias, já não se cansavam na subida.  O sol nasceu naquele inverno,  mas o calor do corpo não o fez sentir, como deve ser feito nos invernos.
Na primavera, ele não voltava mais para casa.  Deixou-se vagar em noites aleatórias em casas subsequentes.  E o que era um virou dois.  O que era dois, virou quatro.  Tudo assim, tudo ao quadrado.  E o expoente aumentava. E aquela primavera foi precoce,  como não deveria ser.  E foi fria.  Fria porque o frio do inverno, que não se fez presente, reclamou seu trono.  E a coberta  felpuda rasgou,  o colchão felpudo murchou,  o tapete felpudo gastou, o sofá felpudo sujou.  Os 4l e 200ml tornaram-se 8l e 400ml, 12l 600ml, mas não eram divididos. Pagava suas contas com dinheiro emprestado.  O muro,  que foi os portões do paraíso e um ícone,  manchou-se de sangue,  e as línguas que eram suas escadarias e que já não se cansavam da subida,  volveram-se para baixo,  rumo ao mais gelado círculo do inferno.  O círculo dos perdidos.  E aquela primavera foi longa,  como só os invernos sabem ser.
No verão,  ele finalmente voltou para casa.  A bebida se fazia item obrigatório, então quem se importava com o expoente elevado dos litros ou das mls? Pagava sua conta com dinheiro roubado, olhava seus familiares como estranhos, e dançava seus erros com a convicção de uma marcha fúnebre.  Se o frio diminuiu,  a dormência dos ventos primaveris o privou das sensações.  E olhava para aquele muro,  que havia sido os portões do paraíso, um ícone e os portões para o inferno, como a lúgubre fachada de um cemitério.  E a sua língua,  que havia sido a escadarias,  para cima e para baixo,  tornou se o caminho tortuoso até os túmulos.  Naquele verão, o sol não raiou,  e seu horizonte era seu teto.  E ele já não sabia mais quanto tempo aquele verão duraria, pois estava sendo longo, como nenhum verão deveria ser.
No outono subsequente, ele saiu de casa e sentiu-se como se tivesse passado a vida inteira fora.  Mas a calmaria era tamanha que a azaleia não desabrochou,  nem mesmo sem aviso prévio.  Engoliu seu vício sem sentir o gosto,  e não se importou se pagou a conta com dinheiro justo, emprestado ou roubado.  Sequer se importou se pagou ou não.  Sentia o tapete felpudo,  o colchão felpudo,  a coberta felpuda,  o sofá felpudo em seu coração igualmente felpudo e, por isso mesmo, adormecido gratamente.  Docilmente.  Caminhou por aquele bar uma vez inesperado, e deparou-se com o cemitério que já havia sido céu.  Caminhou por sua língua que não o levava para cima ou para baixo, apenas adiante.  Acendeu seu tabaco,  talhou seu corpo,  e cobriu sua pele de desenhos infantis feitos com seu próprio sangue,  por que era o mesmo sangue da infância,  aquela que ele sentia falta,  e aquilo foi bom.  Não soube dizer quanto tempo passara fora,  ou quantas estações mais aquele outono apático duraria.  E não fazia questão.  Daquele vez,  ele jamais voltaria à sua casa, ou a de alma viva que fosse.

                                                                                        [Fernando M. Minighiti][18.06.2015][22:30]


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