sexta-feira, 22 de maio de 2015

Absorção (ou Convergência)

Ela percebeu que estava do lado de fora quando acordou e viu o mundo distorcido, como que pela superfície de um lago levemente agitado. O desespero a tomou conta, e não era pela vista ruim, não. Era pela exposição, pela sua vulnerabilidade. Sentia-se nua, desprotegia.
Via borrões, mas percebeu que eles a encaravam de volta, pela primeira vez em sua insignificante existência.A viam com nitidez. Sentia as golfadas de ar frio e cortante enquanto caminhava  pela calçada, como se nada fosse mais cruel. Sua pele, desacostumada, ameaçava a rachar à intempérie.
E, ao mesmo tempo em que o vento fustigava os cabelos há muito estáticos, era difícil respirar. Tudo era rarefeito, quase como no cume mais alto, no oceano mais profundo. Ou como um peixe fora desse oceano. Pois foi assim que se sentiu quando todos aqueles olhos aquáticos e cruéis a fitaram –  debatia-se ao som de risadas que demoravam mais tempo para viajar pelo ar até seus ouvidos meio surdos, do que no ar livre.
Mas aquilo era o ar livre, não era?         
A voz falhava-lhe para deixar a garganta e, quando o fazia, soava distorcida e estranha. Cada vez que esfregava os olhos a fim de clarear a visão, mais aquosa ela se tornava. Respirava com dificuldade, pois seus pulmões eram a única coisa que parecia seca naquele mundo subitamente aquático: estavam em chamas. Arf. Arf. Fogo. Arf. Arf. Inspirar. Expirar. 
Com. Bus. Tão.
Ao poucos, caminhar tornou-se difícil. Suas pernas fraquejavam, e uma estranha característica pegajosa tomou conta de todo seu corpo, ao passo que ao retornar para seu casulo, teve que jogar-se inteiramente contra a porta para força-la a fechar – trancar era impossível: a chave deslizava e escorregava por entre seus dedos.
Ela derretia, literal ou figurativamente, interna ou externamente, para ela ou para o mundo, ela não sabia. Mas que esta versão nua e crua a matava, ela nunca teve dúvidas.
Desabou sobre o chão pautado quando perdeu completamente as forças, e deixou que a celulose sugasse o seu corpo que se liquefazia. Não obstante, a pouca matéria ainda lúcida que restava em seu castelo sugou avidamente a tinta antes escrita naquelas folhas. Sugou até a última gota, como um vampiro que acabara de acordar; como um bebê suga o peito da mãe depois de uma longa noite de sono. Sugou daquela tinta como um drogado precisa dos seus fluídos, na esperança mútua de desaparecer: ela, as palavras e o fluído.
Escuridão.
Ao recobrar a frágil consciência, estava côncava novamente. Sua pele estava sólida mais uma vez, e ela já podia levantar com firmeza. Abriu a porta e deparou-se com a floresta. Era um suave crepúsculo, mas ela sabia que aquilo era tudo, e nada no mundo tiraria aquele tom laranja escuro do céu. 
Olhou ao redor. Podia sentir o peso da pétala que se desprendia da rosa há dez quilômetros e pousava no chão, suavemente, e sentia que ela poderia ser a próxima. Mas o mundo estava novamente sob foco, e sua respiração estava regular. 
Nunca se sentira tão bem. 

[Fernando M. Minighiti][17-22.05.2015]




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