Era fim de noite, quase o dia seguinte, quando ele parou o carro em frente à casa. Mesmo assim ele não se importou. Sabia que eram noturnos e não se enganou: luzes indicavam a vivência do local. Era sábado. Ele abaixou o retrovisor, encarou o seu rosto no pequeno espelho e não o viu. No lugar dele, uma suntuosa máscara veneziana cobria sua face. De um dourado pálido, tinha linhas em vermelho sangue e alguns brilhos. Sobre a cabeça, magníficas tiras que lembravam tecidos estavam estiradas displicentemente para o alto, só para caírem suavemente em direções opostas.. Sob a ponta de cada uma dessas tiras, sininhos. A máscara acabava na altura de seus lábios, no final de suas bochechas, mas isso também era encoberto por um enorme e pontudo nariz, que passava uma imagem ameaçadora àquele bobo da corte de Veneza.
Saiu silenciosamente do carro negro, e mais silenciosamente ainda fechou a porta. Também vestido todo de negro, caminhou até o porta malas. Lá, sacou uma pá. Era só disso que precisava. O outro item, seu revólver, já estava em seu bolso.
Com a pá nos ombros, não caminhou para a casa. Em vez disso, dirigiu-se ao lado oposto e começou a pisar em um chão de terra úmida. Devia ter chovido naquela manhã. Sem hesitar, pôs-se a cavar.
Era a primeira vez que cavava, mas não havia muitos segredos em se criar uma sepultura. Inicialmente, pensou em fazer vários exemplares dela. Repensando, porém, decidiu que uma bastaria, pois isso representaria união, em todos os aspectos. Era lindo. Era poético. Artístico. Assim como ele. Com todo o cuidado do mundo para sujar-se o menos possível, cavou, cavou e cavou.
A casa cheia, o coração vazio
O veneno acabou, a festa esvaziou
O tempo da inocência terminou.
Cavou, cavou e cavou. Pouco mais de um metro e meio. Rasa, sim. Mas nada além do necessário, o suficiente para não ser feio, e sim artístico. Artístico. Como ele.
Pulou para fora da cova. Caçou uma pedra. Achou uma grande, relativamente redonda. Fincou-a na base da sepultura. E isso era tudo. Não haveria de ter nomes ali. O espólio daquela vergonha não haveria de ser lembrado. Ela haveria de morrer como indigente, sem herdeiros, sem memória. Sem legado.
Eu pude ver o sol desaparecer do seu rosto, dos seus olhos, da sua vida.
Desaparecera, e não nasceria novamente.
Colocou a pá novamente sobre o ombro (esquerdo), e voltou para o carro. Não parou neste. Continuou para a casa.
As luzes estavam acesas, mas ele não tocou a campainha. Preferia uma estrada mais apoteótica, Artística (como ele). Sendo assim, pegou certo impulso e chutou violentamente o portão. O barulho causou alvoroço nos moradores não só da casa, mas de toda a rua silenciosa naquele início de madrugada. Mas isso não o impediu. Duas, três, quatro vezes. Na quinta tentativa, o portão cedeu.
À essa altura, um homem já havia saído de casa, ao passo que não pôde continuar velozmente e caiu. Sem dar atenção a ele, o bobo da corte continuou seu caminho. Livrou-se da pá (que caiu perigosamente perto do homem no chão), e sacou seu revólver.
Destravou-o com uma mão, enquanto o apoiava com a outra, e isso lhe trouxe tanto prazer quanto estalar seus dedos cansados - por que no momento que que se tocaram, seu dedo transformou-se no gatilho da arma, uma extensão de seu braço, assustadoramente natural ao seu corpo.
O bobo veneziano adentrou a casa, e algumas mulheres avançaram sobre ele, ao passo que algumas bofetadas as deixaram imóveis.
Foi então que um homem surgiu, e o levantou pelo pescoço, grudando o bobo na parede. Ele sentiu o ar esvair-se de seus pulmões, enquanto esperneava. Esperando não dar motivos para mostrar-se fraco, amoleceu seu corpo, ao passo que a mão do homem soltou o pescoço do bobo. Este, então, desferiu um golpe com a arma na cabeça do outro. Sangue jorrou em diversas direções, mas o homem não estava morto. Apenas caiu, e no chão permaneceu.
E ali estava ele, o último homem: a morte, a solidão, a descrença. O lado negro do amor. A perdição. E doçura insuportável. A perfeição.
Nenhum dos dois fez nada por alguns segundos. Até que o bobo disparou, e voou, por que a arma era dele e era ele. Seus dentes sentiram a carne dilacerada de raspão pela bala, por que ele era a bala, em sua raiva e mágoa, em sua culpa e sua sensibilidade. Ele sentiu o sangue, e dele bebeu enquanto o outro caía no chão, urrando de dor.
Ele urrava, e o som não era bom. Ele urrava, e isso incomodava os ouvidos do bobo. Ele não queria sofrimento. Ele era um bobo. Ele não era triste. Ele não aceitava tristeza. Ele não tolerava.
O bobo avançou sobre o homem ferido. Ele não aceitava tristeza. Sentou-se no peito do rapaz, o qual gemeu um pouco mais alto sobre o peso ossudo do bobo. Ele não deveria estar chorando assim, ele não devia estar gritando assim, ele deveria se calar.
Sacou seu revólver e disferiu uma coronhada no rosto do homem. Mais sangue espirrou, manchando suas roupas pretas e deixando o vermelho da máscara ainda mais pálido. O homem, ao menos, havia parado de demonstrar sua dor.
Lentamente, artisticamente, o bobo segurou o nariz pontudo da máscara, que era o seu nariz, e removeu-a.
O homem por baixo do bobo viu, então, em meio à uma visão ensanguentada, que o bobo não era um bobo. Era um palhaço.
A tinta pálida cobria seu rosto por completo. Uma espécie de batom negro cobria seus lábios, assim como seu olhos também estavam escuros e borrados, contrastando com a palidez geral de sua face. Em uma das bochechas, a única cor que se realçava: uma grande lágrima pintada de azul.
-Porque choras tanto? - sussurrou o palhaço. - Por que choras?
Suave e artisticamente, introduziu o cano do revólver na boca ensanguentada do homem, enquanto descia seus lábios negros para o ouvido dele.
-Pierrô só queria Colombina. - continuou sussurrando, cada vez mais espaçadamente, mais ofegante, mais embargado, terrível e descontroladamente embargado. Aquilo não estava nos planos, - Colombina deveria largar Arlequim e vir para seu Pierrô. Mas ela não voltará para este Pierrô. Nunca mais. Nem ela, nem ninguém.
O palhaço triste tremia. Aos poucos, seu dedo já era seu dedo novamente e, num ímpeto, livrou-se da arma. Com um salto, deixou o homem no chão, livrando-o dos ossos de Pierrô.
Por mais que doa, não é maravilhoso sentir?
O palhaço olhou ao seu redor. Todos aqueles que machucara estavam vivos, e observavam a cena apavorados - mas não menos agressivos, defensivos. Era o instinto de sobrevivência que reinava naquele local.
Lágrimas verdadeiras, transparentes e não azuis, e nada artísticas, brotaram nos olhos negros do palhaço triste, e assim sua fraqueza foi mostrada ao mundo. Não lágrimas de medo - ele já sabia o que iria se passar ali - mas, sim, lágrimas de tristeza e de arrependimento.
-Desculpem-me - ele sussurrou para todos e para ninguém. - Eu só queria Colombina.
E correu.
Voltou pelo portão derrubado, e desvencilhou-se da multidão que observava a casa, até poder chegar na sepultura que ele havia cavado, quando ainda era um temível e artístico bobo da corte de Veneza.
Lá, em profundo pranto, ajoelhou-se e regou a cova com suas lágrimas, fazendo de seus soluços as vezes dos sinos.
Foi quando a multidão se abriu, e todos aqueles que ele agredira, homens e mulheres, apareceram, formando um meio círculo.
No centro, mancando, apoiado em duas mulheres e com a arma que o palhaço deixara para trás em suas mãos, esteva o homem mais ferido, o único que tinha sido atingido de raspão, pelo único tiro desferido.
O palhaço nada disse. Apenas deu as costas à sepultura cavada e levantou-se, enquanto se forçava a encarar todos ali.
Vão tentar derrubar, que é pra me ver crescer.
E, às vezes, me matar, que é pra eu renascer como uma supernova que atravessa o ar.
Pierrô fitou Colombina e Arlequim. Eles eram, hoje e para sempre, indissociáveis.
Diferente do que o acertara de raspão, o tiro que o rapaz desferiu contra Pierrô fora certeiro, e este morreu antes de atingir o solo. Mas se ele pudesse ter tido a oportunidade de presenciar a cena, teria visto que seu corpo caiu artisticamente na sepultura que não cavara para si, mas que lhe serviu como uma luva.
Diferente do que o acertara de raspão, o tiro que o rapaz desferiu contra Pierrô fora certeiro, e este morreu antes de atingir o solo. Mas se ele pudesse ter tido a oportunidade de presenciar a cena, teria visto que seu corpo caiu artisticamente na sepultura que não cavara para si, mas que lhe serviu como uma luva.
[Fernando M. Minighiti][24.03.2015][01:08]
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