Eu nunca usei o presente blog como um canal com o qual eu me comunicasse com outras pessoas - apesar de receber modestas visitas. Onde quero chegar é que sou um egoísta. Nunca preocupei-me em escrever em primeira pessoa, nunca procurei interagir com os poucos leitores e, honestamente, não sinto a menor falta disso. Sou fechado. Aqui não seria diferente.
Entretanto, por mais que eu esteja 5 horas atrasado, eu não pude deixar de lembrar que ontem, dia 25 de março, foi comemorado o Dia do Orgulho Gay. Sendo o mais sincero possível, não sei o que se passou comigo, porém um súbito desejo de expressar-me, de falar, de escrever, tomou-me conta.
E eu preciso falar.
Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Artigo 1
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
Artigo 2
I) Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. (...)
É lindo e é justo. É poético e, na prática, é uma mentira. E as provas são claras. Segundo o Grupo Gay Bahia (GGB), no ano de 2013, um homossexual foi assassinado a cada 28 horas no Brasil. Durante todo o ano. Pelo simples crime de ser gay, de se relacionar com pessoas do mesmo sexo. Por saírem dos padrões.
Eu não consigo ver a morte de um gay. Eu vejo o assassinato de um ser humano. Um semelhante. O que o Zé da padaria ou o João do mercadinho ganham ou perdem se seu vizinho sai com homens? O que o torna diferente?
Nós, gays, somos dotados de todos os atributos que um "ser humano normal" detêm. Pagamos nossas contas, vamos ao trabalho, saímos para nos divertir com nossos parceiros (ou parceiras). E - surpresa! - sim, nós nos beijamos - e sentimo-nos tão felizardos como quando um homem beija uma mulher.
Então, sob quais direitos essa sociedade hipócrita pode nos privar de nossa felicidade? Sob quais méritos somos julgados como escória, como errados, pervertidos, pecadores, criminosos? Sob quais direitos somos submetidos ao medo de sair de uma festa em um domingo de manhã, carregando o receio de ser espancado, agredido, ferido, humilhado, abusado, morto?
Eu, como gay, tive muito medo, no início. Tive medo por ter vivido 16 anos da minha vida imerso em uma sociedade preconceituosa e machista, onde me ensinaram desde cedo que homem gostar de homem e mulher gostar de mulher era errado. Fui privado, por pessoas absolutamente próximas, a comprar uma simples camiseta roxa por que "roxo é a cor do gay". Fui ensinado que "o Cazuza só era um grande poeta, por que de resto era um depravado, pois era gay". Quanta tolice.
Minha sexualidade é natural, e não uma escolha. Eu sou assim. Eu sou assim e reneguei isso por 16 anos. Reneguei à exaustão, reneguei até que não suportasse mais, até que a sanidade me deixasse. E, junto dela, que quase minha vida me deixasse também.
A pressão social foi tão cruel no meu psicológico, que eu não queria ser mais um ser humano tão errado, que gostava de garotos. Eu não queria ser uma vergonha para minha família, o motivo de gozação para meus colegas. Eu queria ser "normal". Mas não podia.
Eu já tentei colocar um ponto final na minha vida, e o apoio de determinadas pessoas durante essa fase delicada da minha vida foi essencial para que eu não repetisse a tentativa e, dessa vez, quem sabe, obtivesse sucesso.
Hoje, com praticamente 21 anos, eu posso dizer que me orgulho de ser assim, gay, e tão normal quanto qualquer pessoa. Meus relacionamentos, meus círculos de amizades e diversos outros papéis sociais foram drasticamente influenciados por todo o preconceito que, mesmo que indiretamente, sofri. Costumo dizer que tenho uma mente quebrada. Arredia. Mas isso eu sei que é passageiro. E, mesmo carregando meus traumas, consigo erguer a cabeça e dizer "você não é ninguém que possa me classificar, me julgar e me depreciar. Eu sou gay. Sou humano. E essa integridade ninguém nunca há de roubar-me".
Pergunto-me o que o cidadão tradicionalista, que ergue placas de apoio a intervenções militares em protestos como o do último dia 15 de março tem na cabeça. Ou o que o mesmo cidadão tradicionalista sente na sua suntuosa mesa de café da manhã e leia em seu jornal sobre a Parada Gay e chame a todos de depravados. Pergunto-me o que se passa nas mentes de pessoas como Levy Fidelix, Marco Feliciano (este machista e homofóbico de marca maior). Pergunto-me se existe consciência em pessoas que acreditam que uma família só pode ser denominada como tal se seguir o "modelo padrão" de homem, mulher e filhos. Pergunto-me se todas essas pessoas são felizes. Pergunto-me se elas percebem que, além de ofender uma classe que por si só já é frágil, cometem crimes diariamente. Seriam esses crimes perdoáveis para essa parcela da população? Não comecei este texto com os dois primeiros artigos dos Direitos Humanos à toa.
Entretanto, acredito em um futuro melhor. Acredito que um dia viverei em uma sociedade onde poderei ver héteros, gays e lésbicas andando pelas ruas de mãos dadas sem se preocupar com o que vão pensar. Acredito que posso ver o dia onde não seremos maltratados e que não teremos direitos básicos negados. O dia que nos verão como família. O dia em que o jovem não sentirá vergonha de dizer aos seus amigos e à sua família que é gay. Que não seremos mortos por sermos quem somos.
Como dizia Chico Buarque, amanhã vai ser outro dia...
[Fernando M. Minighiti][26.03.2015][06:01]
Como se já não tivesse me estendido o suficiente, aproveito para deixar registrado um último recado acerca do Dia do Orgulho Gay. Uma linda lição do magnífico Allan Jones que todos deveriam seguir, em busca de dias melhores.
“Eu, que pretendo solene dispor cuidadosamente das palavras a fim de não desrespeitar quem quer não mereça, venho, em nome de toda autoridade que eu não tenho e nem preciso, pedir-lhes que deem fé a este comunicado:
Que fiquem, a partir de agora, desinterditados o carinho e a safadeza entre:
As cidadãs e as outras cidadãs das cidades
os cidadãos e os outros cidadãos
a cidadona e seus cinco cidadãos
a outra cidadã e os seus oito cidadãos
o cidadão e suas 17 cidadãs infláveis…
O porteiro do prédio e o limpador da piscina do prédio. Seja na portaria ou na própria piscina do prédio, que não tem porta e, sendo assim, fica mais fácil de tomar banho escondido e abraçado na água morna, cantarolando as canções de Andaluzia que aprenderam às 5h15 da manhã com seus companheiros de orelha.
Que se desproíba também a vendedora de salada de frutas e a mulher que saliva ao ouvir o sininho pendurado na moto da vendedora de salada de frutas. A mulher que desce as escadas com água na boca, e toca mais uma vez o sininho, e saliva. E sorri. E sonha subir naquela moto e correr por todas as ruas do mundo, correr até que se acabe o petróleo que fabrica a gasolina, só para que elas possam ficar perdidas em qualquer asfalto longe, só para que elas possam tocar aquele sininho o mais alto que puderem, até as mãos se desmancharem, para que todo mundo saiba que, há quatro meses, elas nem aguentam comer mais a salada de frutas. É que elas salivam, e que sorriem e que se encontram mesmo é pela língua da boca uma da outra. E pelo som delicioso que elas juram escutar daquele sininho.
Que a juíza de Direito Maria Aparecida dos Santos possa finalmente usar em algum porta-retrato o presente que ganhou da travesti Vivian Lolita: uma foto em que se abraçam e uma dedicatória em que se diz: ‘Maria, desculpe a falta de decoro, mas é que eu não vejo a hora de sair do teu armário, me leva pra rua, lembra? É só a parte de fora do meu peito é que não é de verdade. Que fique permitido o nosso abraço’.
Que a partir de agora fiquem terminantemente permitidos todos os abraços. Os abraços dos braços ou os abraços das pernas. Sejam essas pernas cabeludas ou raspadas. Pretas ou brancas. Listradas ou azuis!
E que a única coisa que fique terminantemente condenada seja o desrespeito e a utilização de métodos de estiramento capilar na cabeça de pessoas como o Excelentíssimo Senhor Deputado Pastor Presidente da Comissão de Direitos Humanos deste país. Condene-se o preconceito contra os cabelos que nascem duros e contra os paus que ficam duros pelo que quer que seja! Contra o amor ou contra o cu de quem quiser que exista. Fiquem eles proibidos. E quanto aos outros e outras, que continuem fodendo e lutando por dias mais bonitos.”
[Da discursiva][Allan Jones]
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