quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Raiva tragicômica para ser recitada

Se é negro, é sempre preto demais
Imagina eu, parado pela ronda
Apalpado, julgado
que vergonha, a família não merece
saber que você fuma maconha.

Se os olhos são puxados
não serve mais do que pra resguardo
Precisa ter pintão, bundão
igual àquele de negão
mas sem ser preto demais.

Se dá pinta, esquece
Você não tem vergonha?
Vai apanhar na rua, igual prostituta
engrossa a voz, caralho, aqui é discreto
e só te como no sigilo, quieto.

Mas entre quatro paredes
você pode se soltar, rebolar, pode miar
pedir gostoso pra apanhar
igual àquele que dá pinta
e sangra na calçada da esquina.

Se é fiel demais
não vai passar do primeiro mês
monogamia não é a vez
Poliamor, trisal, desapego
Nova ordem para novo sossego

Que vem depois da foda
Mas se quiser foder, bebê, não se choca
que amanhã a rola já é nova
E ai se chamar de puta
Só crio as próprias condutas.

Se for pobre, sem chance.
A gente conversa, mas nem se adiante
Bicha poc, dependente, não é atraente.
Como vai pagar meu jantar caro?
Como vai me dar num motel sem carro?

Tenho cara pra metrô,
proletário suado, trabalhador
que se espreme sem ar condicionado
pra ver um pretendente a namorado
que nem sequer é condutor?

E se não morar sozinho?
Bom pra ser bons amigos
Cama de casal é requisito
Casa própria é só o início,
free-pass, assim pode até ser marido

Mas se for o morto,
É outro da nossa causa
que se mata nesse mundo louco
Mais um irmão que partiu, sorriso que sumiu
mas enlouquecido pela ironia

de ver machismo e homofobia
na heteronormatividade escondida
no espelho daquele que deveria ser família
mas que de longe prega a união
a menos que tenha bundão, pintão, culhão.

[Fernando Minighiti][10.10.2018][11h28]


segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Covardia

Há, para tudo, um tempo,
desde o frio alvorecer
até a hora do adeus latente.
Perde o tempo, passa a hora
e nada pode mais ser feito

Prolonga a inevitável morte,
semeia o corpo sem vida,
rega a pele apodrecida,
profunda em terra batida;
de coração que já não palpita.

E pede pra santo, reza pra deus,
pra da morte flores nascer
de corpo decomposto liquefazendo.
Desespero do que já foi
e deveria, de fato, ter ido.

Mas fica, ainda que preso,
pois já passou o tempo,
e o adeus uma vez iminente
agora se prolonga, doente,
no estômago do bigato

que mói a falta de tempo
por nós mesmos feito,
ansiando por ressurreição
à espera que o tempo volte
e tudo finde, então.

[Fernando M. Minighiti][05.08.2017][23:28]


terça-feira, 19 de junho de 2018

Estocolmo

Se tudo já tivesse esquecido
essas palavras já não me pertenceriam
toda a saudade já teria ido
angustia e tristezas adormeceriam.

Cortado a fogo no toco baixo
raiz que sobrevive, respiro asfixiado
presente que calmamente desfaço
em ode dolorosa ao passado.

Hey, brother, onde estás agora
que o amanhã logo menos já veio?
Vem e, depois, esquece.

Vem, mostra que hoje te tornas
homem melhor do que já me lembro.
Vem e, depois, evanesce.

[Fernando M. Minighiti][18:22][19.06.2018]


segunda-feira, 21 de maio de 2018

Temporais

Abre as asas do penar
e voa sobre a vasta incompreensão.
Transpassa da noite o pálido luar
que do lado negro se vê o coração.

Sonha com mar livre, revolto,
canção de fúria sentimental.
Flutua em teu lamaçal roto,
apático, resignado em desgraça tal.

Em anseios longínquos,
derrama teus sonhos líquidos,
evaporado em céus há muito ultrajados.

E serve-se do santo temporal,
do gosto amargo do delírio bestial
de sonhos que morreram desatinados.

[Fernando M. Minighiti][07.05.18][23:26]



quinta-feira, 22 de março de 2018

Cavidade

Nunca sonhou com um amor falho,
embora soubesse que nunca havia amado.
Em determinações ofegantes, delirava acordado,
com brisas de plumas e amores de concreto,
no auge de seus dezessete mal vividos.
Não sabia nem escrever poema.

Aveludou o coração de escarlate e sóbria púrpura,
meio caminho entre a elegância e o luto,
ainda que não houvesse perdido a ninguém ainda.
Mas era elegante, era jovem,
era ingrato sofista sem saber que seria
dono destituído do nariz e coração.

E quando finalmente perdeu, enterrou seus afetos,
percebeu que jamais aprenderia
olhar-se no espelho e ver como seria
a face do amor longe de perfeito.
E tentou enterrar suas angústias em versos,
mas ainda não sabia como fazia.

E como um deus, num sopro de fúria celestial,
partiu as rubras águas do coração
para descobrir da profundidade o vão.
E lá, num poço sem fim, entre amores meio mortos,
toda a sua existência reunida no vazio
e no eco de uma voz jamais dita.

"Rasgaste o coração e descobriste a imensidão vossa.
Vês a extensão do nada que lhe dá forma?
Estira tuas angústias no oceano de teu pesar,
das infinitas lágrimas que ainda hão de chegar,
e deixa ser o vento a tua fúria contida
que guia barco e ondas de volta a teu cais."

E então calou de amargor o seu pranto,
pois de fato o mar estava ali, revolto.
Flechou com fogo os sonhos que o oceano carregou,
e lhe trouxe de todos aquele mais falho amor.
Pressentiu algo por dentro, mas fingiu que não sentia.
Tomou a pena na mão, mas ainda não sabia fazer poesia.

[Fernando M. Minighiti][20/03/2018][19h25]




quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Infiltração

Essa tristeza não tem nome,
nasce de pequenas mentiras
que minam as rachaduras
de quem uma vez já foi destroçado.

Essa tristeza poderia não ter nome,
ser insondável ou indolor.
Mas tem começo e fim -
e meios mais mesquinhos.

E mina, mina em meu ser,
brota dos meus olhos,
salgadas e incolores.

E quanto mais tento esquecer,
mais à desconfiança retorno.
De dor e temores sinto os sabores.

[Fernando M. Minighiti][14.02.2018][18:07]



terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Inexistência

Eu queria escrever sobre o vazio
que aos poucos corrói e corrói por dentro
mas como transformar em poema
algo que inexiste em sua existência?

Da anormalidade tornada sistemática
à vida convertida em variável
peso de em uma única medida
flutuar numa balança desequilibrada.

Não há meios de cicatrizar
numa vida sem mais voltas
em memórias nunca esquecidas

E sempre que é preciso canalizar
nascem apenas sinfonias sem notas
ou sonetos sem rimas.

[Fernando M. Minighiti][07.01.28][21:15]