Ele poderia ficar naquela floresta para sempre. A respiração ofegante do homicídio dera espaço a uma calmaria boa. O sangue, que não era seu, já secara na pele - então ele já não precisava mais senti-lo escorrer. Os olhos fechados, podia sentir cada organismo vivo naquele bosque gigantesco. O vento que fustigava, de leve, as folhas, carregando seus aromas pelo ar. As formigas que voltavam abastecidas, em perfeita ordem, para uma sociedade livre das mazelas humanas. Os cervos que, de longe, os observavam sorrateiramente. As aves que vislumbravam as clareiras e espalhavam maus presságios aos mundos. Presságios provavelmente escutados por algum deus, por alguma entidade oculta - tantos sinônimos para as reações.
Lentamente, abriu os olhos. O sol, ainda que não estivesse visível, dava os primeiros sinais de que iria se levantar em breve. Uma brisa gelada acariciou seu corpo, e ele sentiu que era o momento de levanta-se. Não sabia quanto tempo havia passado desde que recostara-se naquela árvore milenar. A julgar pelo corpo, poderia ter se passado apenas alguns poucos minutos, mas a verdade era que não sabia ao certo. Mas quem se importa com a verdade, ele pensava; a verdade, essa amiga traiçoeira, possuidora de tantas faces; dissimulada, incapaz de apresentar-se da mesma forma duas vezes. A verdade era o pulsar do sangue em suas têmporas, e nada mais. O resto é duvidável, corruptível.
Regressou à clareira e encontrou os cadáveres - pelo menos seis deles, com suas saias de renda vastas ou calças de boca larga envoltas por botinas de cano bem alto. A podridão e a putrefação já haviam se instaurado ali, uma que vez que de cadáveres plácidos não tinham mais nada, mas eram, sim, banquetes fartos e luxuosos para vermes. Não passavam de memórias.
Sem cerimônia, despiu um dos corpos e cobriu a própria nudez. Haviam coisas na vida muito piores do que vestir os trajes de um morto devorado por vermes. Ademais, lembrava-se o tempo todo que não deveria confiar em tudo o que sues olhos viam - uma vez que a verdade poderia ser questionável, havia a possibilidade de tudo aquilo nem mesmo ser real. Não que fizesse alguma diferença.
Uma vez vestido, contornou a fogueira, há muito apagada, que ainda estava ali, como um fóssil preservado pelo tempo. Adentrou novamente na floresta e, como que sorvendo cada milímetro daquele local, caminhou vagarosamente. Começou a perceber, então, que enxergava aquela floresta como um único e gigantesco organismo vivo. Se pudesse apurar a audição, poderia ouvir não o vento, mas sua respiração - lenta, profunda. Atravessou um rio gelado que a cortava ao meio, e pode sentir o sangue que nela fluía, os batimentos de seu coração selvagem e livre. Nada é mais livre que uma floresta. Ela cresce descontroladamente, se embrenha em lugares inimagináveis. Cria suas regras, e não há humano vivo que as conheça. Ali tudo está em perfeita harmonia, tão milimetricamente equiparado numa espécie de balança cósmica que ele podia sentir essa precisão natural enquanto a penetrava mais fundo. E, ao passo que era possuidora de tamanha simetria, ocultava segredos para além da imaginação de qualquer mortal - e ele também podia pressentir tais hostilidades. Quantas almas aquele lugar abrigava? Quantos perderam suas mentes ao adentrar a floresta? O que ela escondia a cada moita, a cada depressão, a cada teia de aranha esmeradamente tecida? Como algo tão selvagem poderia ser tão belo? Como a liberdade poderia ser tão tentadora, "embriagável"?
Sem respostas, reencontrou a cabana. A hera dominara as paredes, e as copas das árvores mais próximas se curvaram para criar uma espécie de redoma. A cabana era, agora, parte da floresta, apenas mais uma molécula, um ínfimo átomo desse assombroso organismo. Avançou pela clareira e reparou que o sol ainda não nascera por completo. A sombra de sua luz invadia o mundo, mas ele sequer despontara ainda. Voltou seus olhos para a construção e, sem hesitar - conhecia aquele lugar como a palma de sua mão - entrou na cabana.
À sua direita, a mesma cama. Nela, algumas ferramentas - um grande e pesado martelo, uma espingarda de eras passadas, um pequeno tonel de ácido. Aparentemente, o clima hostil abriu alguns buracos no telhado, uma vez que diversas folhas e pedaços de tronco dividiam o espaço com a cama. Em um dos cantos, um forno à lenha decrépito e, ao seu lado, uma mesa de madeira rústica que exibia uma cesta de vime cuidadosamente colocada com diversas frutas, agora tão putrefatas quanto os cadáveres da roupa que vestia.
Foi apenas quando percebeu que nada ali lhe seria de serventia novamente que ele reparou em algo que jamais reparara em todos aqueles anos. No lado oposto ao da cama, na parede oposta à da porta em ruínas, havia outra porta. Só mais uma. Muito provavelmente uma porta dos fundos. Mas o fato que repassava em sua mente, como um disco riscado, era que jamais reparara naquela porta. Assim, foi até a cama e agarrou o pequeno, porém mortal tonel de H2So4 e rumou para a porta desconhecida. De longe, era o elemento mais bem cuidado daquela cabana, quase como se não pertencesse àquele lugar.
Uma vez destrancada, entrou no novo aposento, que não compreendia quaisquer elementos. Livre de mobílias, vazio como a mente dele, o quarto era gelado como o 9º círculo do Inferno. Em meio à condensação de sua respiração, caminhou lentamente pelo aposento que - salvo pela temperatura que se fazia presente em sua pele e pelo ar que, depois de expelido, dançava à frente de seus olhos -, não apresentava indícios nenhum de tão baixa temperatura. Mas ainda que o clima ali fosse tão inóspito, muito provavelmente fora o lar de alguém. Foi a esta conclusão que ele chegou quando, enquanto caminhava vagarosamente e encolhia o corpo robusto, encontrou algumas folhas perdidas no chão de madeira. Foi apenas quando se aproximou delas que percebeu que eram cartas e, ainda que várias, nenhuma realmente finalizada.
"Meu amor,
Jamais pediu permissão para invadir de tal maneira minha vida - mas ainda que o fizesses, estou seguro que jamais o negaria. Há muito transformaste o frio que outrora habitava meu coração em uma brisa de verão eterna. O mundo nunca me pareceu uma lugar mais feliz, e acredito que até o sol, que creio jamais ter conhecido antes, alegrou-se em saber que poderia aquecer-me também.
Sinto que pela primeira vez deixei de sobreviver e passei a conhecer a sensação de se viver. De realmente viver. Ontem, ao deitar entre as folhas secas na floresta, pude sentir seu próprio suspiro, vindo da raiz mais profunda, alcançando-me como uma marola, sentindo minha alegria e alegrando-se mutuamente. Nunca imaginei que a floresta também poderia..."
"Meu amor,
e minha perdição. Há quanto tempo tenho estado preso aqui? Quanto tempo mais hei de sobreviver? Há muito tempo aqueceu meu coação com aveludado calor, mas agora sinto que o inverno jamais terá um fim. Não existem mais nuvens no meu céu, que consiste em uma imensa mancha branca, de moco que brinco de desvendar as formas da minha respiração condensada - por mais que tente, só vejo ali a morte. O brilho que outrora me trouxeste há muito de extinguiu, e sinto como se a floresta houvesse morrido. Então, pergunto-te: quanto tempo mais demorarei para seguir o mesmo destino?
Como, diga-me, haveria de esquecer-te agora que tudo é tão inóspito? Como não lembrar da primavera quando o inverno chega? Como não nos lembrar da finitude quando a imortalidade lança sua maldição sobre nós? Como haveria de curar meu coração da tua doença, amor, se o roubaste de mim?
Às vezes acho que morrerei sozinho neste lugar. Às vezes poderia jurar que o Anjo da Morte, ao vir para beijar-me, teria suas feições puras, olimpianas, amor - como de fato pensei ter avistado, noite passada, na floresta, quando..."
Diversas outras cartas, todas abruptamente finalizadas, estavam espalhadas pelo assoalho, como quem houvesse passado por ali e não reparara que as havia deixado cair. Em algumas, ele reparou, a tinta manchada e ainda úmida. Mas se o desaventurado escritor ainda estivesse por perto, não haveria muito mais o que ele pudesse fazer. Se o frio não matara ao tolo, ele pensava, então o mataria. Mantendo tal pensamento em mente, deixou as cartas que lia pousarem novamente a seus lugares de direito, borrando mais uma vez a tinta, de leve, quando elas se tocara no ar, no meio da descida. Voltou, então, pela porta a que entrou.
A cabana, entretanto, não era mais a mesma. A cama, o forno, a mesa, a cesta e as frutas haviam desaparecido. Até a putrefação havia sido erradicada daquele local, e não apenas da cabana, mas dos corpos: ali, no meio do aposento agora vazio, jaziam os seis cadáveres da clareira. Os vermes e a carne em decomposição, entretanto, não existiam mais. De fato, salvo pelo fato que estavam mortos, pareciam mais vivos do que nunca. Deitados ali, lado a lado, poderiam apenas estarem dormindo. De fato, ele pode escutar uma respiração, ainda que lenta e profunda, debochada, e não soube dizer foi proveniente da floresta ou dos mortos.
O cadáver o qual havia roubado a roupa repousava nu ao lado de seus companheiros. A barba rala por fazer e o peito largo, branco como uma manhã de inverno. Os braços fortes terminavam em mãos que repousavam na barriga. O membro flácido, as coxas grossas e as pernas que não lhe davam muita altura.
Ele poderia correr. Desesperar-se. Orar para a floresta deixá-lo sair dali ainda são. Mas apenas observou as presas abatidas. Aquilo era real? Não apenas os cadáveres, mas as cartas, o frio que morava ao lado, a floresta. O que era palpável também poderia ser corruptível, falho? Seria seu coração confiável? Teria ao menos um, ele pensava. Mas se não tivesse, o que seria aquela pressão nas têmporas, a única coisa real?
Despiu-se novamente. Dessa vez não sentiu frio, ou a brisa da floresta, ou a pulsação da sua vitalidade selvagem. O sangue que não era seu e que outrora secara em seu corpo, passou a escorrer novamente, mais vívido e quente do que nunca, pingando no assoalho, enquanto ele, lentamente, vestia o cadáver, que mesmo nu era cheio de dignidade morta.
Ao finalizar, ele repousou o corpo cuidadosamente ao lado de seus companheiros e, agora ele mesmo nu, os observou por certo tempo. Vazio como estava, de corpo e alma, também não foi capaz de mensurar quanto tempo ficara ali, a admirá-los. Escutou novamente o sussurro que vinha da floresta, e teve certeza que ela dizia que só havia um único morto ali, naquela cabana que agora não passava de um mausoléu.
Nada dali tinha mais serventia a ele, estava bem seguro disso. Sendo assim, reabriu a porta em ruínas para voltar à floresta, quando caiu. Não havia mais floresta, e ele não pode perceber tal fato a tempo de evitar o primeiro passo, de modo que escorregou para o infinito. Era uma queda vertiginosa no escuro, e enquanto seu corpo rolava no nada, podia entrever a luz da cabana ficando cada vez mais para o alto. Foi incapaz de gritar. De fato, surpreendera-se, sim, mas entregou o quase nada que havia de si mesmo à queda. Pode quase que desfrutar da sensação de perdição iminente. O vento fustigava seu corpo, mais feroz do que seria capaz de imaginar, e ele sentia que aos poucos desaparecia.
Então, tão súbito como começou, a queda chegou ao fim. Tudo era escuridão e vazio, de modo que ele não pode ver que o chão se aproximava. De fato, não chegou nem a senti-lo. A queda simplesmente resolvera cessar, e assim foi.
Trôpego, sem saber onde se encontrava - mas nem por isso inquieto - levantou-se. Olhou para o alto e pode distinguir na imensidão, minúscula, a cabana da qual caíra. Pensou ter avistado pares de olhos observando-o pela janela, mas eles já não estavam mais ali quando piscou.
Tocou seu corpo. Ainda estava nu e aparentemente intacto. À altura do peito, sentiu um emaranhado de pelos e descobriu que era sua barba, agora enorme, como que se não a fizesse por anos a fio. E, de fato, todo seu corpo estava enrugado e envelhecido. Caíra por anos ou os anos explodiram dentro si, em segundos? Não sabia responder. E apesar de toda a idade do seu corpo, sua mente continuava a indagar-se o que indagava momentos antes da queda, quando ainda era vigoroso e jovem: afinal, o que ele soube responder em toda a vida?
E era nisso que ele pensava quando reparou que, à sua frente, no meio da escuridão, do vazio e do nada, havia uma porta - sem parede ou batente. Ela apenas existia. E só sabia que havia ali uma porta pelo quase indistinto reflexo que a luzinha da cabana, quilômetros acima, fazia na maçaneta lustrosa.
Com os passos falhos de um idoso, a coluna curvada e dolorida, caminhou até a porta. Abriu-a.
Do lado de fora, a floresta que estava bem acostumado a viver. Ao menos era isso que acreditava ver - não se dava mais ao luxo de se questionar se era a mesma ou não, ou de fazer quaisquer perguntas das quais sabia que não teria respostas. Apenas acreditou que ali era, de fato, a mesma floresta, e isso bastou.
Atravessou o batente da porta como a um umbral e pode sentir novamente aquele organismo, mais vívido do que nunca. Era capaz de jurar que o próprio solo produzia ondas leves - inspirando, expirando. Inspirando, expirando.
Girou o corpo para trás, sentindo o próprio peso acabando com seus joelhos. Não havia porta alguma, quiçá uma cabana. No chão, uma coroa enferrujada e um cetro partido ao meio.
Ajoelhou-se. Olhou para o céu. O sol ainda não nascera.
[Fernando M. Minighit][30.10.2016][01:24]
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