No outono, ele se atrasou três horas para voltar para a casa. Deliberadamente. Isso porque aquele outono pareceu uma primavera. Sentou na mesa daquele bar tão inesperadamente como as azaléias desabrocham sem aviso prévio. Dividiu 4l e 200ml e dançou seus erros como se fosse a Valsa das Flores. E aquele muro, de repente, não era um muro, mas os portões do paraíso, e sua língua, a escada para a salvação. Pagou sua conta com direito justo, que acabou tão rápido como o outono deve acabar.
No inverno, ele não queria mais se atrasar para voltar para casa, porque ele não queria voltar para casa. E as vezes não voltava. Só às vezes. E aquele inverno foi intenso, como todos os invernos, mas foi quente. Quente porque o corpo humano é quente, e os olhos eram fogo vivo. Quente por que a coberta era felpuda, o colchão era felpudo, o tapete era felpudo, o sofá era felpudo. E até o coração era felpudo, mas isso passou despercebido. E o álcool já não era tão frequente. Os 4l e 200ml eram metabolizados, e a Valsa das Flores ainda tocava. E o muro, que era o portão do paraíso, tornou se ícone, e as línguas, que eram as suas escadarias, já não se cansavam na subida. O sol nasceu naquele inverno, mas o calor do corpo não o fez sentir, como deve ser feito nos invernos.
Na primavera, ele não voltava mais para casa. Deixou-se vagar em noites aleatórias em casas subsequentes. E o que era um virou dois. O que era dois, virou quatro. Tudo assim, tudo ao quadrado. E o expoente aumentava. E aquela primavera foi precoce, como não deveria ser. E foi fria. Fria porque o frio do inverno, que não se fez presente, reclamou seu trono. E a coberta felpuda rasgou, o colchão felpudo murchou, o tapete felpudo gastou, o sofá felpudo sujou. Os 4l e 200ml tornaram-se 8l e 400ml, 12l 600ml, mas não eram divididos. Pagava suas contas com dinheiro emprestado. O muro, que foi os portões do paraíso e um ícone, manchou-se de sangue, e as línguas que eram suas escadarias e que já não se cansavam da subida, volveram-se para baixo, rumo ao mais gelado círculo do inferno. O círculo dos perdidos. E aquela primavera foi longa, como só os invernos sabem ser.
No verão, ele finalmente voltou para casa. A bebida se fazia item obrigatório, então quem se importava com o expoente elevado dos litros ou das mls? Pagava sua conta com dinheiro roubado, olhava seus familiares como estranhos, e dançava seus erros com a convicção de uma marcha fúnebre. Se o frio diminuiu, a dormência dos ventos primaveris o privou das sensações. E olhava para aquele muro, que havia sido os portões do paraíso, um ícone e os portões para o inferno, como a lúgubre fachada de um cemitério. E a sua língua, que havia sido a escadarias, para cima e para baixo, tornou se o caminho tortuoso até os túmulos. Naquele verão, o sol não raiou, e seu horizonte era seu teto. E ele já não sabia mais quanto tempo aquele verão duraria, pois estava sendo longo, como nenhum verão deveria ser.
No outono subsequente, ele saiu de casa e sentiu-se como se tivesse passado a vida inteira fora. Mas a calmaria era tamanha que a azaleia não desabrochou, nem mesmo sem aviso prévio. Engoliu seu vício sem sentir o gosto, e não se importou se pagou a conta com dinheiro justo, emprestado ou roubado. Sequer se importou se pagou ou não. Sentia o tapete felpudo, o colchão felpudo, a coberta felpuda, o sofá felpudo em seu coração igualmente felpudo e, por isso mesmo, adormecido gratamente. Docilmente. Caminhou por aquele bar uma vez inesperado, e deparou-se com o cemitério que já havia sido céu. Caminhou por sua língua que não o levava para cima ou para baixo, apenas adiante. Acendeu seu tabaco, talhou seu corpo, e cobriu sua pele de desenhos infantis feitos com seu próprio sangue, por que era o mesmo sangue da infância, aquela que ele sentia falta, e aquilo foi bom. Não soube dizer quanto tempo passara fora, ou quantas estações mais aquele outono apático duraria. E não fazia questão. Daquele vez, ele jamais voltaria à sua casa, ou a de alma viva que fosse.
[Fernando M. Minighiti][18.06.2015][22:30]