domingo, 19 de fevereiro de 2017

Soneto quebrado

Deleita os olhos
em teus terrores líquidos.
Correm como ratos do predador
lufadas de ar no concreto liso.

Repara além das portas fechadas,
segue no olhar como que caçador  -
o trem adiante se perde
num passado finito.

Pisa na camisa roxa surrada
largada na escada,
e agora concreto também é.

Que não pare no caminho,
engole choro, engole carinho,
que passado o presente também é.

[Fernando M. Minighiti][19.02.2017][00h57]


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Apatia

Lá pelas horas que antecedem a manhã, as respirações já estavam sincronizadas. Suspiros leves e espontâneos quebravam o ritmo, que logo era restabelecido. Até que a respiração fez cócegas na nuca mais baixa. Ele se mexeu de leve, passou as mãos no pescoço. Curvou mais a cabeça. As cócegas eram involuntárias, por isso mesmo irritantes, mas de um prazer inumano. 
Abriu os olhos. Sentiu o cheiro de couro sintético, barato. O braço adormecido, privado de circulação, ele desdobrou e o deixou cair. Apoiava o outro sobre o lençol. Ainda sentia a respiração dele brincando-lhe na nuca, o peito inflando e murchando devagar às suas costas, sua mão repousando suavemente na sua lateral. Naquele momento ele era o ser mais leve. 
Sentia a luz opaca da televisão o banhar. O som, quase inaudível, dizia que algum tipo de orquestra tocava. Ainda assim, ele não se virou. A música estava tão baixa que poderia estar saindo de seus pensamentos mais profundos, e aquilo estava agradável. As luzes dos eletrônicos piscavam freneticamente ao fundo. Tudo estava vivo e, ainda assim, muito silencioso, como que à espreita.
O braço voltou a circular, e ele pôde a superfície felpuda. Cada vez era uma sensação única. Sentiu, também, as cinturas que se tocavam e as pernas, que de tão enroladas tornavam-se um só corpo. Fechou os olhos e, por um instante, foi tudo: respiração, toque, música, luz.
Virou-se para o outro lado, lentamente. Sentiu o formato do travesseiro mudar. A mão escorreu de sua lateral, então ele a recolocou, pendendo agora até suas costas. E, de lá, deslizou sua própria mão pela outra mão, pelo braço. Subiu-lhe pelo ombro até descansar no peito branco que ainda movia-se lentamente. Tocou-lhe o maxilar curvo, sentiu-lhe a aspereza da barba.
Os lábios fechavam-se em botão. O nariz europeu, irritantemente simétrico, continuava a expelir o ar que o acordara. O viu com os olhos e com as mãos até que a música se tornasse insuportavelmente alta e um nó formasse dentro de si. 
Ainda assim, tudo permanecia calmo enquanto ele o partia em pedaços e o escondia. Escondeu no peito, na cabeça, na boca. Fez do sangue dele o seu sangue, da sua carne, uma pele emprestada. Envolveu-o num abraço sangrento e desesperado, numa calma mortífera. Roubou-lhe a voz, roubou-lhe os medos. 
Desfez-se.
O sol nasceu. Espreguiçou-se. Esticou o braço até vencer todo o colchão vazio e alcançar o couro barato. Não estava sozinho.

[Fernando M. Minighiti][09.02.2017][02:07]