quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Abstração

Com o tempo e com a idade, ele aprendeu a abstrair. Se foi ele, se foi o mundo, ninguém soube dizer. Muito menos ele mesmo. O fato é que tudo o que era pesado tornou-se leve e a ausência de gravidade o fez flutuar. As métricas tornaram-se minimalistas. O exagero regressou ao estado natural daquilo que era apenas essencial. Tudo passou a ter o sentido que nasceu para ter. Até a abstinência.
Primeiro, ele precisou secar. Nadara em águas profundas, porque sempre fora um enigma. Na imensidão do revolto mar da psique, encontrara seu lugar na submersão total. Regressar à superfície fora difícil e trabalhoso. Pesado, no sentido prático. Quando aquele que se entrega aos seus instintos animalescos escala a montanha do consciente, sofre. E ele sofreu. E foi o primeiro conceito que ele abstraiu. E aprendeu. So. Fri. Men. To. Enquanto estava submerso, estava entregue. Não ao mundo, mas a si. Fora na genuinidade dos sentimentos irrefreáveis que descobrira seu eu mais profundo, tanto quanto aqueles bancos de areias submersos. Como emergir ao pico mais alto, e levar consigo tudo aquilo que descobrira ser? Ele o fez. E o vento o secou.
Depois, ele esqueceu. Aos poucos, como quem não quer que o doce acabe. Vagarosamente, assim como o outono despe as árvores. E, lá do alto, suas memórias caíram como folhas secas. 
Se as palavras eram o tronco, as flores eram personificação da voz. A primeira coisa que o deixou foram as cordas vocais. Já não se lembrava mais da tonalidade, da voz, do timbre, do canto. O vento sussurrava em seus ouvidos, então até isso fora despejado para fora de si. 
Depois, foi a vez da amargura. Da decepção. Da mágoa. Da tristeza. Abriu os olhos, mas não viu a imensidão que o cercava, mas tudo aquilo que o continha - e nem por isso menos imenso. Viu o coração pulsante e os rios de sangue. As colinas de ossos. Os pulmões negros. Viu as borboletas secas e mortas em seu estômago. Nenhuma delas agonizava. Nenhuma sofria de uma morte dolorosa e ainda inacabada. Nenhuminha. Submergiu todos os cadáveres com bile. E o a dor nunca mais o tocou. Nem a elas.
Quando enfim despiu-se, quando o outono finalmente fizera seu trabalho, tranquilizou-se. Percebeu que existia. Isto é, deu-se conta dos processos. Precisou estar à beira da mais alta escarpa, precisou despir-se, precisou corroer-se com seu próprio ácido para que, agora, olhasse suas necessidades. Sua biologia.
Lá estava ele, emerso, um saco de pele que guardava ossos e sangue. Cada batida de seu coração era como um soco no peito, e ele podia sentir cada glóbulo fluir em suas artérias mais profundas. O ar que seus pulmões roubavam parecia limpo demais para ele, que precisou de tempo para acostumar-se a sentir seu par de órgãos, antes secos, inflando e murchando. Inflando e murchando. Inflando, inflando e murchando. E, quando fechava os olhos e se concentrava, podia jurar que sentia cada neurônio em seu cérebro, em sua rede de bilhões de elos. Ele era um deles.
E assim viveu e viveu. 
Viveu. Sóbrio. 
Sóbrio, viveu. 
Sobreviveu.
E, quando descobriu que sobrevivia, abriu os olhos. 
Ele era o mesmo - ossos, pele, órgãos, carne, sangue. Alguma coisa faltava, e essa coisa era inominável. Aquela querência o tomou de tal forma que precipitou-se. Em espírito e em corpo. E, como uma última pétala, atirou-se para o fundo do seu ser e para o fundo do mar de onde saíra. 
O vento do inverno que  já chegava balançava sua queda, assim como a árvore balançava furiosamente. Mas se ela estava nua, de onde vinha aquele sussurro que só existe quando o vento acaricia as folhas, as flores? Onde estaria escondida a vida naqueles galhos secos e mortos? 
Onde o ciclo deveria renovar-se?
Abriu os olhos. Cada vez mais perto de sua existência, via inúmeras estrelas refletidas na superfície do mar. Podia ouvir o batuque selvagem que se escondia tão bem naquelas águas negras, perfuradas por luzes que não eram delas.
Daquela vez, as notas eram diferentes. 
Guinou seu corpo, leve como uma folha. Sentia o sangue fluir e pulsar em suas têmporas, enquanto o rugido de um leão ecoava pela garganta. 
Inclinou-se para a imensidão. O céu estava estrelado.

[Fernando M. Minighiti][28.10.2015][04:30]




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